09.02.2024
[Lisbon Arbitration] Como conduzir o processo arbitral: Parar, olhar, escutar… e avançar!
Na generalidade das leis e regulamentos sobre arbitragem, as partes podem livremente acordar nas regras de processo aplicáveis e, na falta de acordo, é o tribunal arbitral que define e conduz o processo arbitral segundo as regras que considere adequadas1.
O tribunal arbitral tem, tipicamente, ampla discricionariedade e flexibilidade na condução do processo arbitral, dentro dos limites decorrentes do acordo das partes, dos princípios fundamentais que enformam o processo equitativo2 e, ainda, do respeito pelas regras e princípios da ordem pública internacional do Estado em que se localiza a sede da arbitragem (cuja lei será aplicável ao processo arbitral), assim como, numa certa medida, pelas regras e princípios de princípios da ordem pública internacional dos Estados nos quais a execução da sentença arbitral será provavelmente requerida (pelo menos na medida em que for possível identificá-los nesta fase), nos termos da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras [CNY, cfr. artigo V, n.º 2, alínea b)]3 e ao abrigo das normas nacionais de cada Estado4.
Uma vantagem proeminente da arbitragem internacional assenta, exatamente, no referido poder-dever de o tribunal arbitral definir regras pertinentes para organização e condução do processo especificamente criadas para a resolução do litígio concreto, tendo em consideração as circunstâncias particulares do caso, as expetativas das partes e dos respetivos advogados, bem como ainda a necessidade de uma resolução do litígio de forma justa e eficiente, quer nos custos, quer na duração5. À referida vantagem acresce outra: a possibilidade de, na
arbitragem internacional, as partes poderem escolher o(s) árbitro(s), podendo relevar como um dos critérios de seleção o conhecimento especializado e a experiência adquirida no desenho de regras processuais específicas e apropriadas à resolução justa, célere e eficiente de cada disputa.
Após estas notas de enquadramento, coloca-se a questão novamente: como deve(m), então, o(s) árbitro(s) conduzir o processo arbitral?
Antes de mais, é desejável e aconselhável que o tribunal arbitral decida tempestivamente as regras de processo. O momento (ou diversos momentos) em que se definem as regras do jogo é (são) fundamental(is), principalmente em arbitragens internacionais em que as partes podem ter contextos culturais, experiências profissionais e expetativas diferentes na forma de condução das arbitragens. Um grau razoável de previsibilidade é essencial para que as partes possam organizar as estratégias de defesa das respetivas posições no processo. A definição e orientação, desde cedo, quanto às regras do jogo evitam, pois, desentendimentos, atrasos, custos desnecessários e, eventualmente, disputas processuais.
Em geral, e com ligeiras variações consoante o tipo de arbitragem, após o requerimento de arbitragem pela Demandante, a resposta pela Demandada e a respetiva constituição do tribunal arbitral, o passo lógico seguinte será a definição das regras processuais aplicáveis6.
Assim, a definição das regras mais adequadas ao processo implica, em primeiro lugar, parar e ponderar vários elementos relevantes: i) os factos alegados, as posições e os pedidos deduzidos pelas partes, ii) a convenção de arbitragem e o eventual regulamento processual aplicável já que, dependendo do tipo de arbitragem, desde logo se ad hoc ou se institucional, existem naturalmente moldes diferentes a seguir e, ainda, iii) os vários aspetos processuais que poderão ser relevantes de acordo com os contornos particulares do caso.
Para tal, existem diversos guias que poderão ser considerados pelos árbitros, como as Uncitral Notes on Organizing Arbitral Proceedings, o modelo de ata de missão da CCI e o Apêndice IV do Regulamento de Arbitragem da CCI relativo a técnicas para a condução do procedimento, o Relatório da Comissão da CCI sobre técnicas para controlar tempo e custos na arbitragem, o Manual de Referência do ICCA para redação de questões logísticas em ordens processuais e a checklist do ICCA para primeira ordem processual, entre outros.
Com efeito, a ordem processual inicial (procedural order no. 1, PO n.º 1) é – e deve ser – feita à medida do caso concreto.
Sem prejuízo do poder (e dever) de adaptação das regras gerais aplicáveis ao caso concreto, é usual incluir alguns tópicos na PO n.º 1, tais como:
- O calendário processual provisório, com as diversas fases processuais (incluindo número de rondas de articulados, número e fins específicos das audiências, se haverá alegações finais escritas ou orais, etc.) e respetivos prazos para cada fase processual (com especial enfoque na data da audiência final). A fixação da data da audiência final é muito importante para garantir a disponibilidade de todos os intervenientes e limitar quaisquer alterações de calendário, nomeadamente nas fases anteriores à audiência e que venham a ser necessárias ou requeridas, promovendo a desejada previsibilidade para as partes e respetivos mandatários na organização da sua estratégia;
- Inclusão ou não no calendário processual provisório da designada mid-stream conference a ser realizada pelo tribunal e pelas partes entre primeira e segunda rondas de articulados, com o objetivo de as partes apresentarem alegações orais sobre as respetivas posições adotadas e os respetivos argumentos principais, bem como de o tribunal pedir esclarecimentos, colocar questões e determinar quais os aspetos principais que ainda são controversos e que deverão ser desenvolvidos e objeto de prova pelas partes nas fases subsequentes do processo arbitral;
- As regras sobre prova (tipos admissíveis, momentos de apresentação e respetiva produção, limites e requisitos formais e materiais para a produção de cada tipo de prova e respetivo contraditório, nomeadamente para prova documental, para os depoimentos das testemunhas, para a prova pericial, etc, regulando em particular se haverá direct e/ou cross examination das testemunhas e/ou dos peritos na audiência, entre outros princípios básicos de produção de prova);
- A língua da arbitragem, bem como respetivas necessidades de tradução dos documentos e/ou interpretação de depoimentos e ainda respetivo sistema de registo;
- Comunicações entre as partes e o tribunal arbitral;
- Os poderes do tribunal arbitral (nomeadamente de alterar as regras processuais sem necessidade de consentimento das partes) e/ou do Presidente (para decidir autonomamente determinadas questões procedimentais);
- Outras medidas ou regras aplicáveis no intuito de prevenir e poupar custos e tempo na arbitragem internacional, tais como regras relativas à representação das partes ou possível referência às Diretrizes da IBA sobre Representação das Partes em Arbitragem Internacional, i.e., obrigações éticas que regulam a relação dos mandatários com os clientes, com o tribunal arbitral e com os mandatários da parte contrária e/ou possíveis sanções e/ou soluções para eventuais táticas de guerrilha ou manobras puramente dilatórias das partes ou dos respetivos advogados;
- Possível referência ou remissão para as regras da International Bar Association (IBA) sobre Prova em Arbitragem Internacional, entre outras opções possíveis.
Poderá ser, igualmente, necessário regular outros aspetos em função do caso concreto, tais como:
- Possibilidade de bifurcação de processo;
- Fase de produção de documentos;
- Confidencialidade do processo.
Ao invés, a colocação antecipada de questões que poderão vir a revelar-se irrelevantes ou desnecessárias poderá contribuir para uma maior controvérsia e afastamento entre as partes e/ou atrasos e custos injustificados. Poderá, assim, ser conveniente relegar para adiante a decisão sobre determinados aspetos processuais, como a delimitação de questões fundamentais a decidir ou a definição de determinados detalhes práticos da organização da audiência (por exemplo, como deverá ser produzida a prova pericial, etc.).
Além disso, e devido à natureza e função da arbitragem como meio de resolução de litígios assente na autonomia das partes, estas deverão ter a oportunidade de participar na discussão e definição das regras processuais. Tal propósito poderá ser alcançado por diversas formas, consoante, mais uma vez, os vários intervenientes e as particularidades do caso concreto. As partes poderão ser consultadas no âmbito de uma ou mais reuniões após a constituição do tribunal arbitral, que poderão ser realizadas presencialmente ou através de meios de telecomunicação, como por exemplo conferência telefónica ou videoconferência, e que poderão ter lugar antes mesmo de se alinhavar qualquer minuta de PO n.º 1 – embora com uma agenda previamente definida pelos árbitros – ou após partilha de minuta de PO n.º 1 para as partes comentarem, alterarem, proporem novas ideias e, assim, propiciar-se a discussão e um entendimento entre as mesmas.
Acresce que os árbitros poderão definir as regras processuais de modo exclusivo, e num momento e local específico, ou ao mesmo tempo e conjuntamente com a regulação de questões de mérito. Em qualquer caso, e em regra, é preferível que a regulação das questões processuais essenciais conste de ordem(ns) processual(ais) autónoma(s).
Em conclusão, a condução justa e eficiente do processo implica compromisso e disponibilidade dos árbitros para analisar devidamente não apenas os factos mas também as questões processuais necessárias para a decisão do caso concreto, tendo em conta as partes e os interesses subjacentes a cada uma delas, os perfis e contextos dos respetivos advogados e, ainda, a diversidade cultural dos membros do tribunal arbitral (que, em muitos casos, é plural). Nesse contexto, a escolha entre as várias opções de regras de jogo visa, sobretudo, a adequação à resolução justa, célere e eficiente do litígio, o que implica também o compromisso e a disponibilidade dos árbitros para escutar ativamente as partes sobre os principais aspetos processuais e os respetivos interesses subjacentes a cada um deles, promovendo, assim, envolvimento, cooperação e/ou, pelo menos, legitimação das opções seguidas para, então, se fixarem as regras de condução do processo e prosseguir com o mesmo.
Como em qualquer decisão na vida, para além da vontade e responsabilidade por decidir o melhor e mais adequado ao caso concreto, há que seguir uma regra tão simples quanto exigente no sentido de saída de si próprio em direção ao outro, que é a seguinte: PARAR, OLHAR, ESCUTAR… e AVANÇAR!
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1 Vide artigo 19.º da Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional (Lei Modelo) da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral), artigo 17.º das Regras de Arbitragem da Uncitral, artigo 19.º do Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (Regulamento de Arbitragem da CCI), artigo 14.º do Regulamento do London Court of International Arbitration (LCIA), artigo 18.º do Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CAC da CCIP), artigo 30.º da Lei de Arbitragem Voluntária Portuguesa (LAV), artigo 15.º do Regulamento Suíço de Arbitragem Internacional (RSAI), entre outros.
2 No caso português, aplicável por força do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
3 Ratificada, em Portugal, pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/94, de 8 de julho, tendo entrado em vigor em Portugal em 16 de janeiro de 1995 (Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 142/95, de 21 de junho).
4 No caso português, os artigos 46.º, n.º 3, alínea b), subalínea ii), e 56.º, n.º 1, alínea b), subalínea ii), da LAV exigem a compatibilização do conteúdo, reconhecimento e execução da sentença arbitral com a ordem pública internacional do Estado português.
5 Vide Gary B. Born, International Commercial Arbitration, Volume II, Kluwer Law International, The Netherlands, 2009, pp. 1742-1744.; Jason Fry, Simon Greenberg, Francesca Mazza, The Secretariat’s guide to ICC Arbitration, International Chamber of Commerce, France, 2012, pp. 260-268.
6 Vide artigo 17.º das Regras de Arbitragem da Uncitral, artigos 18.º e 19.º da Lei-Modelo da Uncitral, artigo 30.º da LAV, artigo 18.º do CAC da CCIP, artigos 22.º a 24.º do Regulamento de Arbitragem da CCI, artigo 14.º do Regulamento da LCIA, artigo 15.º do RSAI, entre outros.