“Embora o Tribunal de Justiça tenha acabado de comemorar o quinquagésimo aniversário do seu emblemático acórdão van Gend & Loos, os debates acerca das consequências da consagração do efeito direto do direito da União estão longe de ser dados por encerrados (...) especialmente quanto ao alcance do efeito direto das diretivas”, lê-se na introdução das Conclusões do Advogado-geral no processo C-425/12 – Portgás – Sociedade de Produção e Distribuição de Gás, SA contra Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, de que trata este artigo.
Resulta de jurisprudência bem assente em matéria de efeito direto que um particular pode invocar contra o Estado, nomeadamente perante os tribunais nacionais, os direitos que lhe advenham de normas precisas e incondicionais de Diretivas a cuja transposição o Estado não procedeu, atempada ou corretamente (efeito direto “vertical ascendente”). Inversamente, o Estado está impedido de fazer essa mesma invocação contra um particular, prevalecendo-se do seu próprio incumprimento (efeito direto “vertical descendente” ou invertido). À luz da jurisprudência constante do TJUE, uma diretiva não transposta não pode, por si própria, criar obrigações para os particulares.
O que sucede, porém, num caso em que é a autoridade estatal quem pretende exigir o cumprimento de normas de uma diretiva não-transposta contra um particular (empresa privada) que é, simultaneamente, uma entidade concessionária de um serviço público? Estaremos nesse caso ainda perante um efeito vertical “descendente”, proibido pela jurisprudência comunitária? E será relevante, para o caso, a circunstância de a empresa em questão ser subsumível ao conceito de “entidade adjudicante” e portanto, abrangida pelo âmbito subjetivo de aplicação dessa Diretiva?
O TJUE foi chamado a apreciar estas questões no processo C-425/12, o qual consistiu num reenvio efectuado no âmbito de um litígio nacional relativo à validade de uma decisão da entidade gestora do Programa Operacional do Norte, que determinou a reposição de um apoio financeiro concedido à Portgás, por alegado incumprimento, por esta última, das regras em matéria de contratação pública, constantes da Diretiva 93/38/CEE relativa à coordenação de processos de celebração de contratos no sector da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, tal como alterada pela Diretiva 98/4/CE (abreviadamente, «Diretiva 93/38/CEE»).
Tais regras deveriam ter sido transpostas, por Portugal, até 1.01.1998 (quanto às disposições iniciais da Diretiva 93/38/CEE) e até 16.02.2000 (quanto às alterações introduzidas posteriormente). Porém, a legislação nacional de transposição só veio a ser adotada em Agosto de 2001, tendo entrado em vigor em Dezembro desse ano.
Em Julho de 2001 e, portanto, em momento posterior à data limite para a transposição mas anterior à entrada em vigor da legislação nacional de transposição, a Portgás contratou com um terceiro um fornecimento de contadores de gás, sem a observância do formalismo legal imposto pela Diretiva 38/93/ CEE. A Portgás considerou que apenas tinha de respeitar – como fez – a legislação nacional então em vigor e que o Estado português não poderia exigir-lhe, enquanto empresa privada, o cumprimento das disposições de uma diretiva que, à data, não estava transposta e que eram, como tal, insusceptíveis de lhe ser opostas, de acordo com a bem estabelecida jurisprudência do TJUE na matéria.
O Estado Português, pelo contrário, entendeu que a Diretiva em questão teria como destinatários não só aos Estados-membros mas também as entidades adjudicantes abrangidas no seu âmbito de aplicação e que a Portgás, na sua qualidade de concessionária de serviço público exclusivo na zona abrangida pela concessão, estava sujeita às obrigações dela decorrentes, independentemente da sua transposição.
Perante as dúvidas de interpretação suscitadas, o juiz nacional questionou o TJUE sobre se poderiam ser interpretados como criando obrigações para particulares, concessionários de serviços públicos (designadamente, uma entidade abrangida pelo âmbito de aplicação pessoal da Diretiva), os princípios gerais de direito da União ou as normas relevantes da Diretiva 93/38/CEE enquanto esta não tinha sido transposta para o direito interno pelo Estado português, obrigações essas cujo desrespeito poderia ser invocável contra aquela entidade concessionária particular pelo mesmo Estado (através de ato imputável aos seus ministérios).
O TJUE começou por averiguar se a Portgás pode ser considerada como fazendo parte daquele universo de entidades contra as quais as normas de uma Diretiva não transposta pwodem, em regra, ser invocadas ou dito de outra forma, se a Portgás pode, para esse efeito, integrar o conceito (lato) de “Estado”.
Refutando a tese do Estado Português, o TJUE começou por esclarecer que a questão não depende de a Portgás estar ou não abrangido pelo âmbito pessoal da Diretiva, pois “(...) a simples circunstância de uma empresa privada concessionário exclusivo de um serviço público fazer parte das entidades expressamente visadas pelo âmbito de aplicação pessoal da Diretiva 93/38/CEE não tem como consequência que as disposições dessa diretiva possam ser invocadas contra essa empresa.”
Pelo contrário, a resposta à questão depende, fundamentalmente, de saber se essa entidade leva a cabo o serviço (de interesse público) em questão sob controlo de uma autoridade pública e ainda, se dispõe, para esse efeito, de poderes exorbitantes (relativamente às regras aplicáveis nas relações entre particulares).
Embora remetendo a competência para essa verificação para o órgão de reenvio, o TJUE deixou, no seu aresto, pistas importantes para a resolução do caso concreto, nomeadamente, ao afirmar que a mera circunstância de uma empresa concessionária dispor de direitos especiais e exclusivos não significa que a mesma beneficie de “poderes exorbitantes” nem a constatação de “poderes exorbitantes” se pode basear na mera circunstância de ser reconhecido à Portgás o direito de pedir que sejam efetuadas expropriações necessárias à implantação e à exploração de infraestruturas, sem contudo poder ela própria proceder a esses atos.
Num segundo momento, o TJUE pronunciou-se sobre se as autoridades dos Estados-membros poderiam impor o cumprimento das disposições da Diretiva 93/38/CEE, ainda não transposta, a um organismo que eventualmente cumprisse os requisitos supra referidos.
O TJUE começou por recordar que os Estado Membros têm a obrigação de adotar todas as medidas necessárias para alcançar o resultado imposto por uma diretiva e que essa obrigação se impõe a todas as autoridades dos Estados Membros (incluindo aos organismos que, sob controlo dessas autoridades, foram encarregados de um serviço de interesse público e dispõem, para tal, de poderes exorbitantes).
Para o TJUE, seria contraditório defender que as autoridades estatais e organismos que preenchem os requisitos acima referidos estão obrigados a aplicar a Diretiva 93/38/CEE, mas recusar-lhes a possibilidade de exigir o respeito das suas disposições por um organismo que preencha esses requisitos. Por outro lado, o TJUE entendeu que, se o respeito das disposições da Diretiva 93/38/CEE por parte de tais organismos não pudesse ser assegurado por iniciativa de uma autoridade estatal, estar-se-ia a permitir ao Estado que aproveitasse o seu próprio incumprimento.
Mais ainda, uma tal solução conduziria, no entender do TJUE, a uma aplicação não-uniforme da Diretiva, na ordem jurídica interna do Estado Membro em questão, pois a entidade adjudicante seria obrigada ou não a respeitar as disposições da Diretiva 93/38, conforme a natureza das pessoas ou dos organismos que contra ela a invocam (sendo pacífico que um privado o poderia fazer).
Assim, o TJUE conclui que quando uma empresa privada é encarregada por força de um ato de uma autoridade pública de cumprir, sob o controlo desta, um serviço de interesse público e que dispõe, para tal, de poderes exorbitantes (relativamente aos aplicáveis nas relações entre particulares), ela está obrigada a respeitar as disposições da Diretiva 93/38/CEE e, portanto, que tais disposições podem ser invocadas contra a mesma pelas autoridades de um Estado Membro.
Comentário
O Acórdão do TJUE traz clarificações importantes quanto ao âmbito e alcance das obrigações que impendem sobre as várias entidades envolvidas e a sua importância extravasa as circunstâncias do caso concreto. Por um lado, o TJUE reiterou os limites do chamado efeito direto “vertical descendente”, deixando claro que o mesmo não sofre exceções pelo mero facto de o particular em questão ser abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva. Por outro lado, a decisão do TJUE torna claro que uma entidade subsumível ao conceito de “Estado” tem de cumprir as disposições de uma diretiva não transposta, independentemente de saber quem invoca esse cumprimento. Ao mesmo tempo porém, essa subsunção dependerá, em qualquer caso, da demonstração de que existe, no caso concreto,o exercício de uma actividade sob o controlo estatal e o gozo de poderes exorbitantes, o que merece um escrutínio exigente quanto à verificação dos pressupostos respetivos, conforme a apreciação do próprio TJUE deixa antecipar.