Introdução
A Comissão Juncker iniciou o seu mandato no passado dia 1 de novembro. Entre as novidades no processo de eleição que antecedeu a sua entrada em funções, as novas regras de funcionamento colegial instituídas pelo atual Presidente da Comissão Europeia e algumas polémicas que marcaram o primeiro mês de trabalhos, são várias as originalidades em torno da nova formação do órgão executivo da União Europeia e altas as expetativas quanto ao seu desempenho.
Maior democraticidade na génese é sempre bom indício mas também uma responsabilidade acrescida
Pela primeira vez, registou-se um nexo claro entre o resultado das eleições para o Parlamento Europeu e a indigitação para o cargo de Presidente da Comissão Europeia. Esta evolução é o corolário de uma velha exigência do Parlamento Europeu, que encontra acolhimento no artigo 17.º, n.º 7 do Tratado da União Europeia, na redação do Tratado de Lisboa.
Foi também a primeira vez que uma Comissão Europeia entrou em funções na data prevista desde que as audições do Parlamento Europeu foram introduzidas, em 1994, pela Comissão presidida por Jacques Delors. Assim, com base numa proposta do Conselho Europeu, Jean-Claude Juncker foi eleito pelo Parlamento Europeu e, no seguimento da aprovação do restante colégio de Comissários também por este órgão, poderá verdadeiramente afirmar-se que o novo Presidente da Comissão corresponde igualmente ao candidato designado pelo Parlamento Europeu.
Juncker tem feito questão de sublinhar a particular legitimidade democrática do processo que o conduziu às novas funções e, consequentemente, do mandato da nova Comissão. Logo no documento de Orientações Políticas que apresentou ao Parlamento Europeu aquando do debate para escolha do pretendente ao cargo delineou uma agenda política intitulada “Um novo começo para a Europa: O meu programa para o emprego, o crescimento, a equidade e a mudança democrática”1.
Nas cartas de missão dirigidas aos novos Comissários, Juncker sinalizou que a relação da Comissão com o Parlamento Europeu é a fonte da legitimidade democrática da primeira. Nesta medida, apelou aos restantes membros da Comissão para participarem em reuniões do Parlamento Europeu e mesmo em debates nos parlamentos nacionais, sempre que se discutam propostas da iniciativa da Comissão.
Um novo método de trabalho
Uma das componentes prioritárias da nova Comissão passa por escolher criteriosamente as suas áreas de atuação. A agenda de Juncker está essencialmente concentrada em 10 domínios tidos por estratégicos para o futuro da Europa, a saber: emprego, crescimento económico e investimento, era digital, união energética, reforço da base industrial, aprofundamento da união económica e monetária, acordos de comércio com os Estados Unidos da América, iniciativas na área da justiça e dos direitos fundamentais, política de migração, reforço da política externa e melhoria da atuação democrática.
As respostas para questões que extravasem este perímetro são deixadas à atuação dos Estados-Membros, de acordo com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Nesta conformidade, um dos lemas de ação da nova Comissão é, nas palavras do seu atual Presidente: “we cannot and should not do everything: I want the European Commission to be bigger and more ambitious on big things, and smaller and more modest on small things”.
Por forma a procurar responder a este desígnio de forma eficaz, a nova Comissão foi organizada de modo distinto e singular. A responsabilidade pelas áreas chave das Orientações Políticas traçadas cabe agora primacialmente aos Vice-Presidentes da Comissão, que trabalharão de perto com os Comissários das pastas competentes. Daqui resulta que os membros da Comissão terão de se articular cuidadosamente nas várias matérias a seu cargo, sob a supervisão dos Vice-Presidentes setoriais, os quais poderão inclusivamente abordar diretamente (com conhecimento do comissário responsável) os serviços dos Comissários cujas tarefas sejam relevantes para a sua missão.
Na prática, os Vice-Presidentes dispõem de mandato para atuar em nome do Presidente, competindo-lhes até analisar em que medida as iniciativas dos Comissários têm “cabimento político”. De acordo com as orientações do Presidente Juncker “As a general rule, I will not include a new initiative in the Commission Work Programme or place it on the agenda of the College unless this is recommended to me by one of the Vice-Presidents on the basis of sound arguments and a clear narrative that is coherent with the priority projects of the Political Guidelines”2.
Por exemplo, no caso da Comissária Margrethe Vestager, responsável pela política de concorrência, a carta de missão que lhe foi endereçada pelo Presidente Juncker3 dá conta de que a atividade da nova Comissária será coordenada pelo Vice-Presidente para o Emprego, Crescimento, Investimento e Competitividade, pelo Vice-Presidente para o Mercado Único Digital e pelo Vice-Presidente para a União Energética. No passado, a pasta da concorrência tinha um peso político autónomo e significativo no seio da Comissão. O anterior Comissário Almunia era, aliás, um dos Vice-Presidentes da Comissão presidida por Durão Barroso e alguém que conduziu o trabalho nesta área com relativa independência face aos restantes Comissários.
Esta nova dinâmica organizativa é suscetível de potenciar o funcionamento da Comissão como um verdadeiro órgão colegial e como uma equipa, mais focada e sintonizada em torno de grandes linhas de prioridades. No entanto, com o novo crivo político dos Vice-Presidentes e a necessidade de criar consensos entre Comissários com diferentes áreas e sensibilidades, também é possível que o processo de decisão se torne mais moroso e complexo.
A título ilustrativo, e retomando o exemplo da área de concorrência, basta confrontar as Orientações Políticas apresentadas por Juncker ao Parlamento Europeu com algumas iniciativas mais recentes da Direção-Geral de Concorrência para antecipar a potencial sensibilidade de algumas opções futuras. Assim, no domínio energético as sobreditas orientações consagram a ideia de que “we need to strengthen the share of renewable energies on our continent. (...) I therefore want Europe’s Energy Union to become the world number one in renewable energies” (ênfase original); por seu turno, as Orientações da Comissão relativas a auxílios estatais à proteção ambiental e à energia para o período 2014-2020 preveem, como princípio geral, uma redução significativa dos incentivos (e dos instrumentos públicos disponíveis) a favor deste tipo de tecnologia, que não pode deixar de representar – como tem sido visível em vários Estados-Membros – um desencorajamento ao investimento nesta área.
Não deixa também de ser irónico (ou talvez não) que o Presidente Juncker tenha definido como uma das prioridades de concorrência para o mandato da Comissão o combate à evasão fiscal4, uns dias antes de ter sido noticiada a implementação de alegados esquemas empresariais de planeamento fiscal agressivo no Luxemburgo (que teriam aparentemente causado perdas fiscais avultadas em outros Estados-Membros), supostamente aprovados durante o período em que Jean-Claude Juncker ocupava as funções de Primeiro-Ministro daquele país. Diga-se, aliás, que a própria Comissária para a Concorrência veio já a público confirmar que a Comissão está a conduzir uma investigação em matéria de auxílios de Estado nesta área, visando o Luxemburgo e outros países5. Esta situação motivou também a apresentação de uma moção de censura à nova Comissão, movida por um conjunto de deputados do Parlamento Europeu menos de 1 mês volvido sobre a sua entrada em funções, a qual acabou por ser rejeitada por larga maioria.
Reflexões finais
Com a presidência e a composição da Comissão secundadas, desta feita em moldes particularmente estreitos, pelo Parlamento Europeu, a equipa de Juncker dispõe de condições políticas favoráveis para fazer um mandato à altura das adversidades, em época de consolidação orçamental das dívidas pública e privada e de fomento do crescimento económico.
A nova forma de estruturação do executivo europeu coloca desafios importantes ao processo de decisão. É importante que os Comissários não fiquem reféns dos Vice-Presidentes nas áreas técnicas das suas pastas. Paralelamente, na parte da atividade da Comissão que acomoda melhor as iniciativas de cariz político, a prática terá de demonstrar se a estratificação decisória e a concentração de poder nos diversos Vice-Presidentes não colocará entraves excessivos à progressão do Projeto Europeu. No limite, só o tempo permitirá descortinar se, por trás de um novo pensamento, está efetivamente uma nova abordagem.
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1 Disponíveis em http://ec.europa.eu/about/juncker-commission/docs/pg_en.pdf.
2 Carta dirigida ao Parlamento Europeu, clarificando alguns aspetos sobre o papel a desempenhar pelos Vice-Presidentes da Comissão, 25.9.2014, disponível em http://www.europarl.europa.eu/document/ activities/cont/201409/20140930ATT90229/20140930ATT90229EN.pdf.
3 Disponível em http://ec.europa.eu/commission/sites/cwt/files/commissioner_mission_letters/vestager_en.pdf.
4 Cfr. a carta de missão à Comissária Margrethe Vestager, cit., p. 4.
5 http://europa.eu/rapid/press-release_STATEMENT-14-1480_en.htm.