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01.03.2012

A proteção da informação fornecida ao abrigo da “clemência” após o Acórdão Pfleiderer

Uma empresa que se considere lesada pela actuação de um cartel pode recorrer aos tribunais nacionais para obter indemnização pelos danos sofridos. No entanto, a natureza secreta e o funcionamento sofisticado da maioria dos cartéis, podem dificultar a alegação e prova dos factos que integram a causa de pedir deste tipo de acções.

Quando a acção de indemnização surge na sequência de uma condenação do cartel por uma autoridade da concorrência (acção do tipo “follow-on”), o potencial lesado tem especial interesse em obter o máximo de informação possível quanto ao ilícito previamente sancionado, nomeadamente, mediante acesso aos documentos que integram o processo dessa autoridade.

Muito frequentemente porém, tais processos contêm informação auto-incriminatória que os membros do cartel entregaram voluntariamente à autoridade em questão, ao abrigo do regime da “clemência” (que lhes permite beneficiar de uma isenção total ou parcial da multa se admitirem a participação na infracção e prestarem a sua colaboração à autoridade investigadora, por exemplo, fornecendo provas ou informações relevantes quanto ao funcionamento da prática ilícita). Em tais casos, o interesse do lesado aceder ao máximo de informação necessária para substanciar o seu pedido de indemnização contra os membros do cartel entra em conflito com o interesse em se preservar a confiança e a eficácia dos programas de clemência, que pressupõem uma colaboração entre os membros do cartel e a autoridade que investiga.

No processo Pfleiderer1 discutia-se, justamente, a pretensão de um potencial lesado pela actuação de um cartel, de ter acesso aos pedidos de clemência e demais documentação ou informação apresentada pelos requerentes de clemência, para preparar uma acção de indemnização a intentar conta estes.

O tribunal alemão questionou o TJUE sobre se uma decisão que deferisse o acesso àquela informação seria compatível com o direito comunitário tendo em conta, nomeadamente, as regras do Regulamento (CE) n.º 1/2003 que prevêem a cooperação e troca de informação entre a Comissão Europeia e as Autoridades nacionais da concorrências quanto a elementos e documentação relevantes dos processos de investigação e, por outro lado, a própria efectividade da proibição constante do art. 101.º do TFUE (que é a base legal para a punição de cartéis, a par de outras práticas restritivas da concorrência).

Na sua análise, o TJUE começou por recordar que nem as disposições do TFUE nem as disposições do Regulamento (CE) n.º 1/20032 estabelecem regras comuns (uniformizadas) em matéria de programas de clemência ou de acesso à documentação fornecida pelos requerentes de clemência. No quadro da Rede Europeia de Concorrência foi adoptado um regime modelo em matéria de clemência, que visa a harmonização de alguns elementos dos programas nacionais nesta matéria, no entanto, este regime modelo também não tem efeitos vinculativos para os órgãos jurisdicionais dos Estados Membros.

Assim, na falta de uma regulamentação vinculativa do direito da UE nesta matéria, incumbe aos Estados Membros estabelecer e aplicar as regras nacionais quanto ao direito de acesso das pessoas lesadas por um cartel aos documentos relativos aos procedimentos de clemência, cabendo-lhes assegurar, nesse caso, que as regras nacionais aplicáveis não são menos favoráveis do que as referentes às reclamações análogas de natureza interna e não tornam impossível (na prática) ou excessivamente difícil a obtenção de tal reparação.

Em resposta à questão colocada pelo tribunal alemão, o TJUE esclareceu ainda que as disposições do direito da União em matéria de cartéis não se opõem a que uma pessoa lesada por uma infracção ao direito da concorrência da União e que procura obter uma indemnização tenha acesso aos documentos relativos a um procedimento de clemência respeitante ao autor da referida infracção.

No entanto, os órgãos jurisdicionais dos Estados-membros deverão determinar as condições em que tal acesso pode ser concedido ou recusado, com base na legislação nacional e numa ponderação adequada caso-a-caso, tendo em conta todos os factores relevantes, e os interesses protegidos pelo direito da União Europeia.

Comentário

Com o acórdão proferido, o TJUE adoptou uma posição de neutralidade relativamente a qual deve ser a ponderação entre os interesses do enforcement privado ou público (uns e outros tutelados pelo direito da União Europeia), recusando qualquer hierarquização dos mesmos, em abstracto. No processo que esteve na origem do reenvio, o tribunal (alemão) decidiu recusar o acesso do potencial lesado ao pedido de clemência e aos documentos relacionados (em sentido favorável à pretensão da autoridade da concorrência alemã).

Na prática, porém, o acórdão deixa ampla margem de actuação às instâncias nacionais o que perpetua as incertezas quanto ao tratamento a dar a esta matéria e faz temer, além do mais, o acentuar das disparidades nas soluções adoptadas em cada Estado-membros.

A Comissão Europeia anunciou, entretanto, a inclusão, no programa de trabalho para 2012, de uma proposta legislativa que pretende clarificar a interrelação entre acções de indemnização e enforcement público pela Comissão Europeia e autoridades da concorrência nacionais, em especial, no que respeita à protecção de programas de clemência (o que pode significar a ultrapassem, pela via legislativa, de alguns dos riscos da solução preconizada com este acórdão).

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1 C-360/09, acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 14.06.2011
2 Regulamento do Conselho de 16.12.2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos arts. 81.º e 82.º [actualmente, arts 101.º e 102.º] do Tratado.

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