01.05.2015
A segurança do abastecimento energético como derrogação ao direito da União: o acórdão Castelnou Energia c. Comissão
Introdução
Nos últimos anos a segurança do abastecimento energético tem sido uma preocupação crescente, tanto da União Europeia (UE) como de diversos Estados-Membros, sobretudo aqueles mais dependentes de importações de países terceiros para satisfazer as suas necessidades energéticas, que poderão ser afetadas num contexto político internacional incerto. Contudo, a Comissão Europeia e os tribunais europeus sempre se mostraram muito reticentes em admitir que medidas nacionais para salvaguardar a segurança do abastecimento derrogassem as regras de direito da União Europeia, designadamente as relativas às liberdades de circulação no mercado interno europeu e aos auxílios de Estado1.
O recente acórdão do Tribunal Geral no proc. Castelnou c. Comissão2, a propósito de uma legislação espanhola de apoio à produção de electricidade a partir de carvão “autóctone”, constitui, neste contexto, um exemplo interessante. Neste caso, uma medida qualificada como auxílio de Estado, e potencialmente restritiva da liberdade de circulação de mercadorias e do direito de estabelecimento, foi declarada compatível com o direito da UE por corresponder a um serviço de interesse económico geral (SIEG) destinado a garantir a salvaguarda do aprovisionamento de Espanha em eletricidade. Por outro lado, o Tribunal clarificou que, quando uma medida de auxílio não prossegue um objetivo ambiental, a Comissão não está obrigada a apreciá-la ao abrigo das regras de direito da União sobre proteção do ambiente.
A medida de apoio às centrais eléctricas a carvão “espanhol”
Em 2010, o Governo espanhol notificou à Comissão Europeia, à luz das regras sobre auxílios de Estado, uma medida que estabelece um mecanismo de “despacho preferencial” de eletricidade produzida por dez centrais a carvão que utilizam carvão “autóctone” (ou seja, de origem espanhola), prevendo que tal eletricidade devia ser adquirida no mercado diário de eletricidade de preferência à produzida pelas centrais que utilizam carvão importado, fuelóleo e gás natural. As centrais em questão eram obrigadas a produzir determinados volumes de eletricidade a partir de carvão “autóctone”, cujo preço é mais elevado do que o carvão importado, beneficiando de uma compensação igual à diferença entre os custos adicionais de produção que suportaram e o preço de venda da electricidade no mercado diário. Esta medida, que durou entre 2010 e 2014, era financiada através de um fundo controlado pelo Estado espanhol, e tinha um custo previsto de €400 milhões por ano.
Após uma apreciação de vários meses e um processo agitado – várias empresas eléctricas e uma associação setorial, organizações ambientais, personalidades políticas e autoridades locais espanholas pronunciaram-se contra a medida em causa – a Comissão concluiu que o regime nacional notificado constituía um auxílio de Estado, nos termos do artigo 107.o TFUE, mas que era compatível com o direito da União, pois as obrigações impostas às centrais beneficiárias correspondiam à gestão de um serviço de interesse económico geral, à luz do artigo 106.o, n.o 2 TFUE, justificado pela garantia da segurança do abastecimento de Espanha em eletricidade3.
A Castelnou Energía, uma das empresas intervenientes no procedimento, interpôs recurso da decisão de aprovação da Comissão (no que foi apoiada pela Greenpeace Espanha), suscitando diversos erros de apreciação que, na sua opinião, deveriam conduzir à anulação da decisão. O recurso foi, no entanto, rejeitado na totalidade pelo Tribunal Geral, que confirmou a decisão da Comissão, com o entendimento que veremos de seguida.
A proteção da segurança do abastecimento como justificação de um serviço de interesse económico geral
Para o Governo Espanhol, o regime de apoio era necessário para garantir entre 2010 e 2014 uma reserva de capacidade de produção suficiente para dar resposta a períodos de picos de consumo quando as condições meteorológicas não fossem favoráveis à produção de eletricidade a partir de fontes renováveis (as quais em 2013 representavam 52% de toda a capacidade instalada de geração em Espanha4). A disponibilidade das centrais eléctricas a carvão “autóctone” reforçaria a segurança do abastecimento energético de Espanha, pois as restantes fontes de energia fóssil para produção de eletricidade (carvão e gás natural) eram importadas. Por outro lado, na ausência do regime de apoio as referidas centrais seriam provavelmente encerradas, devido aos custos mais elevados do carvão “autóctone”.
De acordo com jurisprudência constante, os Estados-Membros dispõem de uma “ampla margem de apreciação” na determinação da natureza e objeto de um SIEG. Embora a exata “margem de apreciação” reconhecida aos Estados-Membros tenha sido objeto de alguma flutuação jurisprudencial, dependendo das circunstâncias do caso, a medida nacional em apreço tinha apoio expresso na Segunda Diretiva Eletricidade, segundo a qual os Estados-Membros podiam estabelecer que, por razões de segurança do fornecimento, fosse dada prioridade ao despacho das instalações de produção que utilizem fontes endógenas de energia primária5. Por esta razão, e tendo analisado em detalhe os argumentos apresentados pelo Governo Espanhol e pelos restantes interessados, tanto a Comissão, como, em recurso, o Tribunal Geral, admitiram a existência de riscos para a segurança do abastecimento em eletricidade que poderiam justificar a imposição das obrigações de um serviço de interesse económico geral (e a correspondente compensação) às centrais em questão.
O Tribunal Geral confirmou igualmente que a Comissão não tinha cometido um erro manifesto ao concluir pela proporcionalidade do regime espanhol em questão. Recordando que, no domínio dos serviços de interesse económico geral, o controlo da proporcionalidade se limita a verificar se a medida em causa é apropriada para atingir o objetivo proposto, e se, por outro lado, não é excessiva, o Tribunal procedeu em todo o caso a um exame detalhado dos argumentos invocados pela Castelnou Energía, que considerou improcedentes.
Em particular, relativamente às eventuais distorções nos mercados da importação de gás natural e carvão provocadas pelo regime de apoio, o Tribunal considerou (como já anteriormente a Comissão) que tais distorções eram inerentes à noção de auxílio de Estado e que não eram manifestamente desproporcionadas face ao objetivo prosseguido. A este propósito, e recordando jurisprudência anterior no âmbito dos SIEG, o Tribunal Geral afirmou que o ónus da prova sobre o Estado-Membro não pode ir até à exigência de que vá ainda mais além e demonstre, pela positiva, que nenhuma outra medida imaginável, e por definição hipotética, poderia permitir garantir o cumprimento dessas missões nas mesmas condições.
Mercado interno: livre circulação de mercadorias e direito de estabelecimento
Invocando uma jurisprudência antiga sobre a relação entre as regras sobre auxílios de Estado e a livre circulação de mercadorias, a Comissão e o Tribunal evitaram concluir que o regime de apoio ao carvão “autóctone” também constituía uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa às importações, proibida pelo artigo 34.° TFUE, não obstante o mesmo favorecer abertamente a produção nacional de carvão e prejudicar as importações – o que não deixa de ser surpreendente, tendo em conta a noção extremamente ampla de medida de efeito equivalente que resulta da jurisprudência geral do Tribunal de Justiça iniciada pelo acórdão Dassonville (que abrange todas as medidas que directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, possam ter um efeito negativo sobre as importações de outros Estados-Membros).
Em todo o caso, o Tribunal Geral considerou, invocando a jurisprudência Campus Oil, que a segurança do aprovisionamento em eletricidade constituía uma razão de segurança pública, na aceção do artigo 36.° TFUE, susceptível de justificar uma medida restritiva da livre circulação de mercadorias (e também da liberdade de estabelecimento), desde que tal medida respeite o princípio da proporcionalidade, o que considerou que era de facto o caso.
A inaplicabilidade da legislação europeia sobre proteção do ambiente
A Castelnou Energia sustentava também que a aprovação do regime de apoio em questão violava várias disposições do direito da União relativas à proteção do ambiente. O Tribunal Geral, contudo, concluiu que a Comissão não estava obrigada a analisar o regime de apoio em causa à luz das regras europeias sobre proteção do ambiente, visto que este não visava atingir um objetivo de proteção ambiental.
Por outro lado, o Tribunal recordou também que, embora a Comissão deva assegurar a coerência da aplicação do direito da União como um todo, no âmbito da apreciação de um auxílio de Estado a Comissão apenas está obrigada a examinar o respeito pelas restantes regras europeias que visem dar corpo ao mercado interno da UE. Ora, uma vez que o “mercado interno europeu” é definido nos Tratados como “um espaço sem fronteiras em que a livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais está assegurada”, um auxílio que produza efeitos negativos para o ambiente não é, só por si, contrário à criação e existência de um mercado interno.
De todo o modo, o Tribunal Geral analisou os argumentos da Castelnou neste contexto, tendo excluído ainda a violação das regras sobre o comércio de direitos de emissão de efeitos de estufa6, pois embora o regime de apoio às centrais de carvão “autóctone” pudesse levar ao aumento das emissões de CO2 por parte destas centrais, não se traduziria num aumento dos níveis de emissões globalmente assumidos pelas autoridades espanholas.
Conclusão
Apesar de não ser referido abertamente pelo Tribunal, o presente processo apresentava contornos políticos e sociais não negligenciáveis, não só pela forte oposição suscitada de vários quadrantes em Espanha, mas também porque o regime em causa era essencial para a manutenção da indústria mineira de carvão espanhola.
Não é pois de surpreender que a Comissão e o Tribunal, embora declarando formalmente as limitações inerentes ao controlo das opções dos Estados-Membros no âmbito dos serviços de interesse económico geral, tenham procedido a um exame detalhado dos argumentos apresentados tanto pelo Governo Espanhol como pelas entidades intervenientes que se opunham à medida.
Este exame, em todo o caso, foi muito facilitado pelo facto de o próprio legislador europeu ter consagrado, nas diretivas de harmonização do setor da eletricidade, o direito de os Estados-Membros privilegiarem parte da sua produção a partir de fontes de energia endógenas para salvaguardar a segurança do aprovisionamento energético. Sem tal previsão expressa, não é de excluir que a “ampla margem” reconhecida ao Estado Espanhol neste domínio tivesse sido escrutinada ainda mais de perto, e o processo tivesse porventura uma conclusão distinta.
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1 Cfr., relativamente a disposições nacionais que foram consideradas incompatíveis com o direito da UE, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 11.11.2010, proc. C-543/08, Comissão c. Portugal (direitos especiais sobre a EDP) e 10.11.2011, proc. C-212/09, Comissão c. Portugal (direitos especiais sobre a GALP), bem como a jurisprudência aí citada relativamente a casos anteriores.
2 Acórdão de 3.12.2014, proc. T-57/11.
3 Decisão C(2010)4499 da Comissão, de 29.09.2010, proc. N 178/2010 – Espanha. Compensação de serviço público associado a um mecanismo de despacho preferencial a favor de centrais de produção de eletricidade a partir de carvão “autóctone”.
4 Cfr. Red Electrica de España, The Spanish Electricity System Preliminary Report 2013, p. 7.
5 Cfr. o artigo 11.o, n.o 4 da Directiva 2003/54/CE, de 26.06.2003 (JO L 176, de 15.07.2003, p. 37), disposição que se mantém no artigo 15.o, n.o 4 da Directiva 2009/72/CE, de 13.07.2009 (JO L 211, de 14.8.009, p. 55) presentemente em vigor.
6 Diretiva 2003/87/CE, de 13.10.2003 (JO L 275, p. 32).