16.10.2015
A violação do dever de reenvio para o Tribunal de Justiça: O acórdão Silva e Brito c. Portugal e a responsabilidade civil dos Estados-Membros
No início de setembro de 2015, numa decisão de manifesta importância1, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“Tribunal de Justiça”), clarificou o alcance da obrigação de reenvio prejudicial que impende sobre os tribunais superiores dos Estados-Membros. Mais importante, o Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a incompatibilidade das normas nacionais que condicionam o direito de indemnização dos particulares, na sequência de decisões judiciais violadoras do direito da União, à prévia revogação da decisão danosa, cuja aplicação é problemática no caso dos tribunais de recurso decidindo em última instância.
O processo
Na génese do processo está uma sucessão de decisões judiciais contraditórias no âmbito da impugnação de um despedimento coletivo desencadeado pela liquidação da companhia área Air Atlantis, em 1993, que culminaram com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) rejeitando a pretensão dos trabalhadores e declarando a licitude do despedimento. A principal questão controversa era a interpretação a dar ao conceito de “transferência de estabelecimento”, definido por uma diretiva europeia (2001/23/CE)2.
Embora tal conceito tenha sido objeto de interpretações distintas pelos tribunais inferiores neste processo, o STJ considerou que não existia “dúvida relevante” na interpretação da diretiva. Por esta razão, e ao contrário do que lhe havia sido requerido pelos trabalhadores demandantes, o STJ decidiu não submeter a questão ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do regime do reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, nos termos do qual os tribunais nacionais de recurso, decidindo em última instância, estão obrigados a proceder ao reenvio prejudicial se mantiverem dúvidas sobre a interpretação de uma norma de direito da União com relevância para o desfecho do processo.
Tendo os trabalhadores intentado subsequentemente uma ação de indemnização contra o Estado Português, fundada na errónea interpretação daquele conceito, bem como na violação do dever de reenvio prejudicial que impendia sobre o STJ, o tribunal nacional competente (Varas Cíveis de Lisboa) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça três questões prejudiciais, que foram decididas no acórdão sob análise.
O dever de reenvio prejudicial obrigatório do STJ
Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça discordou do entendimento do STJ quanto à interpretação da diretiva em questão, pois concluiu que a situação em causa envolvia de facto uma “transferência de estabelecimento”: a TAP (empresa-mãe da Air Atlantis, que havia decidido dissolver a sua subsidiária) estava ela própria ativa no setor da aviação, e havia entre outros assumido a posição da Air Atlantis em contratos de locação de aviões e nos contratos “charter” em curso com operadores turísticos, bem como readmitido alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida, que foram colocados em funções idênticas.
Em seguida, o Tribunal de Justiça começou por recordar o princípio de que um tribunal nacional decidindo em última instância é obrigado, sempre que uma questão de direito da União seja suscitada perante si, a cumprir a sua obrigação de reenvio, a menos que conclua que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça, ou ainda que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável.
Ora, embora a mera existência de decisões contraditórias anteriores não fosse à partida, suficiente para impor a obrigação de reenvio, no caso em concreto as dúvidas de vários tribunais nacionais em torno do conceito de “transferência de estabelecimento” (que tinham motivado reenvios prejudiciais anteriores) comprovavam, no entender do Tribunal de Justiça, não só a existência de dificuldades de interpretação, mas também a presença de riscos de divergências jurisprudenciais ao nível da União. Com efeito, quando um conceito de direito europeu motiva não só correntes jurisprudenciais contraditórias a nível nacional, como também dificuldades de interpretação recorrentes nos vários Estados-Membros, o tribunal nacional está obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial, de forma a evitar o risco de uma interpretação errada do direito da União.
Do entendimento do Tribunal de Justiça resulta necessariamente que, ao ter decidido não proceder ao reenvio prejudicial, e optado por uma interpretação controversa da norma europeia em causa, o STJ violou as suas obrigações ao abrigo do direito da União.
Direito de indemnização por decisões judiciais nacionais em violação do direito da União
O regime português da responsabilidade civil extracontratual do estado3 estabelece, no seu artigo 13.°, n.° 2, que os pedidos de indemnização por decisões judiciais ilegais devem ser fundados na prévia revogação da decisão danosa. Não tendo o pedido de indemnização sido fundado na prévia revogação do mencionado acórdão do STJ, o Estado Português alegou, no âmbito da ação de responsabilidade civil movida pelos trabalhadores da Air Atlantis, que não haveria lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
Nos termos de jurisprudência europeia assente, a reparação dos danos sofridos em resultado da violação de normas de direito europeu incumbe aos tribunais nacionais, segundo as regras processuais do direito nacional, as quais não podem ser menos favoráveis do que as aplicáveis a reclamações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência), nem tornar, na prática impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação (princípio da efetividade).
O problema do regime português em questão é que as decisões do STJ não são suscetíveis de recurso ordinário, pelo que em princípio, e salvo casos excecionais (aparentemente não aplicáveis no processo em causa), não podem ser revogadas. Por esta razão, o Tribunal de Justiça não teve dúvidas em declarar que a norma nacional em apreço pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação direito da União em causa.
O Tribunal de Justiça rejeitou igualmente que a referida norma nacional seja necessária para salvaguardar o princípio da autoridade do caso julgado e da segurança jurídica (sendo a função do STJ precisamente a de pôr termo definitivo ao litígio, as suas decisões não podem ser recorríveis), como alegado pelo Estado Português. Com efeito, um processo destinado a responsabilizar o Estado não tem o mesmo objeto e não envolve necessariamente as mesmas parte que o processo protegido pela autoridade do caso julgado do acórdão do STJ. Em todo o caso, segundo o Tribunal de Justiça o princípio da segurança jurídica nunca poderia pôr em causa o princípio da responsabilidade do Estado por violações do direito da União.
Assim, o Tribunal de Justiça considerou que a disposição nacional em questão constitui um obstáculo importante à aplicação efetiva do direito da União não justificado pelos princípios invocados pelo Estado Português, sendo pois incompatível com o direito da União quando aplicada a casos como aquele em apreço.
Comentário
Com grande probabilidade, o acórdão Silva e Brito c. Portugal terá implicações importantes que extravasam o presente processo, não só para a prática dos tribunais superiores portugueses e a sua relação com o Tribunal de Justiça, mas também quanto à interpretação (e à futura modificação) das regras da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Não obstante Portugal pertencer à atual União Europeia há mais de três décadas, a verdade é que os tribunais nacionais (salvo algumas exceções, como o Supremo Tribunal Administrativo) se têm mostrado muito relutantes em submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, frequentemente com o argumento de que a interpretação da norma europeia em questão é clara e não suscita dúvidas. Esta relutância é manifesta no caso do STJ, que até ao fim de 2014 havia recorrido ao reenvio prejudicial (mecanismo essencial para o desenvolvimento e aplicação uniforme do direito da União), em apenas quatro processos; a título de comparação, o Tribunal Supremo espanhol no mesmo período submeteu 53 pedidos, e o supremo tribunal austríaco (Oberster Gerichtshof), em apenas vinte anos, 103 pedidos4.
Como refere o Advogado-Geral Bot, nos casos em que as normas de direito europeu se caracterizam por uma abordagem casuística (como era o caso do conceito de “transferência de estabelecimento”), ou nos quais a jurisprudência do Tribunal de Justiça está em constante evolução, os tribunais nacionais superiores – e no presente caso, o STJ – deverão ser particularmente prudentes antes de decidirem não proceder ao reenvio, não devendo ter, em particular, uma confiança excessiva no caráter consolidado da jurisprudência do Tribunal de Justiça.
Espera-se pois que o acórdão Silva e Brito c. Portugal possa contribuir para uma relação de cooperação mais próxima (e saudável) entre o STJ e o Tribunal de Justiça, e em particular ao recurso mais frequente ao mecanismo do reenvio prejudicial quando estejam em causa normas de direito europeu de interpretação incerta – para o que é igualmente essencial, não devemos esquecer, o papel dos advogados em identificar e suscitar, atempada e adequadamente, questões merecedoras de reenvio prejudicial perante o juiz nacional, como foi o caso do processo em apreço.
Por fim, o presente acórdão deverá conduzir, no imediato, à não aplicação, em futuras ações de indemnização contra o Estado fundadas em decisões judiciais violadoras do direito europeu, da regra nacional que pressupõe a revogação da decisão danosa, quando tal decisão não seja suscetível de recurso ordinário a nível nacional.
É igualmente de esperar que, a prazo, o legislador nacional venha a modificar, uma vez mais, o regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado (e em particular o artigo 13.°, n.° 2), regime que no passado foi já declarado incompatível com o direito da União, e que inclusivamente motivou o decretamento de sanções pecuniárias compulsórias contra o Estado Português pela não execução de um acórdão do Tribunal de Justiça, analisadas na presente Newsletter (n.º 1/2008, p. 5).
Este artigo foi escrito em coautoria pelo advogado Miguel Cortes Martins.
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1 Acórdão de 9 de Setembro de 2015, proc. C-160/14, João Filipe Ferreira da Silva e Brito e outros c. Estado Português, ainda não publicado.
2 Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001 (JO L 82, p. 16), que modificou a Directiva 77/187/CEE do Conselho, várias vezes alterada.
3 Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
4 Relatório Anual de 2014 do Tribunal de Justiça, pp. 123-124.