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22.01.2019

Acórdão Coty do TJUE: Quando Pode um Fornecedor Proibir um Distribuidor Autorizado de Vender os seus Produtos através de uma Plataforma (Terceira) Online?

Num acórdão proferido no passado mês de dezembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) veio clarificar que uma empresa fornecedora de cosmética de luxo, que distribui esses produtos mediante um sistema de distribuição seletiva (“SDS”) pode proibir os membros da sua rede de distribuição seletiva de revenderem tais produtos através de plataformas online de terceiros.

Os factos

A Coty é uma empresa fornecedora de cosmética de luxo que comercializa algumas marcas ao abrigo de um SDS, com o propósito de assegurar uma imagem de luxo para tais produtos. A Coty propôs aos seus distribuidores autorizados uma adenda ao contrato de distribuição, na qual previa expressamente a possibilidade de o distribuidor oferecer e vender os produtos online desde que através de uma “montra eletrónica” da loja autorizada que garantisse o caráter luxuoso dos mesmos, mas proibia a intervenção visível de uma empresa terceira na comercialização online dos produtos. Um dos efeitos práticos dessa regra seria a exclusão das vendas através de plataformas online de terceiros como, por exemplo, a Amazon.

Perante a recusa do seu distribuidor - Parfümerie Akzente - em assinar a referida adenda, a Coty intentou uma ação judicial para impedir que esta comercializasse os seus produtos através da Amazon, pretensão que veio a ser recusada pelo Tribunal Regional de Frankfurt, por entender que uma tal limitação constituía uma restrição da concorrência proibida pelo artigo 101.°, 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Em sede de recurso, o Tribunal Regional Superior de Frankfurt reenviou a questão para o TJUE.


A apreciação do TJUE

O TJUE começou por apreciar se a consagração de um SDS relativo a produtos de luxo que tem como objetivo principal preservar a imagem de luxo desses produtos constitui um objetivo legítimo e compatível com o direito da concorrência (de tal forma que escapa à proibição de acordos restritivos da concorrência constante do artigo 101.°, n.° 1, do TFUE) e respondeu afirmativamente a esta questão.

Para o TJUE, um SDS de produtos de luxo que visa, a título principal, preservar a imagem desses produtos, é conforme com o referido artigo, desde que:

(i) a escolha dos revendedores seja feita em função de critérios objetivos de caráter qualitativo, fixados uniformemente para todos os potenciais revendedores e aplicados de modo não discriminatório;
(ii) que as propriedades do produto em causa exijam, de modo a preservar a qualidade e assegurar a sua correta utilização, que exista uma rede de distribuição seletiva; e, por fim,
(iii) que os critérios definidos não ultrapassem a medida do necessário (tudo requisitos bem assentes na jurisprudência da União Europeia desde o acórdão Metro).

Quanto a saber se a cláusula em questão – que impedia a comercialização online mediante a intervenção visível de uma empresa terceira, distinta do distribuidor autorizado – pode ser considerada restritiva da concorrência, logo, proibida pelo artigo 101.º, n.º 1, do TFUE, o Tribunal entendeu que, uma vez que a cláusula se insere no contexto de um SDS que é, em si mesmo, justificado pela necessidade de preservação da imagem de luxo dos produtos em causa, ela mesma é também lícita, se preencher os requisitos acima referidos.

Para o TJUE, a proibição imposta pela Coty é adequada para assegurar a imagem de luxo dos produtos em causa, nomeadamente tendo em conta que:

(i) Uma tal proibição garante ao fornecedor que, no âmbito do comércio eletrónico destes produtos, estes últimos são associados exclusivamente aos distribuidores autorizados;
(ii) O fornecedor consegue por essa forma garantir que os produtos serão vendidos online num ambiente que corresponde às condições qualitativas que acordou com os seus distribuidores autorizados.

O TJUE considerou ainda que a proibição consagrada não excede o que é necessário para alcançar o objetivo prosseguido de manutenção de uma imagem de luxo, nomeadamente, porque não proíbe de forma absoluta os distribuidores autorizados de venderem os produtos contratuais na Internet (essa venda só é proibida quando efetuada através de plataformas terceiras que operem de maneira visível relativamente aos consumidores).

Por outro lado, mesmo que a cláusula fosse considerada restritiva da concorrência (isto é, abrangida pelo artigo 101.º, n.º 1, do TFUE), ela poderia ainda assim beneficiar de uma isenção ao abrigo do Regulamento n.º 330/2010 (Regulamento de isenção aplicável a acordos verticais, de ora em diante apenas “RIC”) a qual confere, em termos práticos, uma presunção de legalidade ao referido acordo.

Com efeito, o TJUE entendeu que não estava em causa uma restrição de clientela proibida pelo artigo 4.º, alínea b), do RIC, nem uma restrição das vendas passivas dos distribuidores autorizados aos utilizadores finais, proibida pelo artigo 4.°, alínea c), do RIC, ambas restrições graves que impedem um acordo de distribuição de beneficiar dessa isenção. Nessa apreciação o TJUE teve em conta, nomeadamente, o facto de a cláusula em questão não proibir – como sucedia, por exemplo, no processo Pierre Fabre – o recurso à Internet como modo de comercialização dos produtos e ainda o facto de a limitação introduzida pela proibição em causa não afetar um grupo específico de clientes, ouseja, o facto de os distribuidores vinculados a essa cláusula não perderem, em virtude da proibição, o acesso a clientes ou a um mercado.


Comentário

A presente decisão constitui uma importante clarificação quanto ao modo como os distribuidores autorizados, membros de um SDS, podem comercializar produtos online e permite pôr fim a alguma controvérsia gerada com a interpretação e aplicação prática dos ensinamentos retirados do acórdão do TJUE no processo Pierre Fabre.

Este último aresto veio clarificar que uma proibição absoluta de vendas pela Internet é uma restrição grave do direito da concorrência mesmo no contexto de um SDS, mas semeou dúvidas quanto a saber em que medida uma empresa poderia atuar para proteger a imagem de prestígio de uma marca sua.

O acórdão Coty veio clarificar que certas limitações à revenda online aplicadas no contexto de um SDS que visa, a título principal, preservar a imagem de luxo dos produtos distribuídos, são admissíveis mediante pressupostos estritos.

Neste processo, a natureza dos produtos em causa e as características do SDS instituído foram relevantes na apreciação efetuada pelo TJUE o que suscita a questão de saber se idêntica conclusão seria extraível no caso de distribuição de produtos que não convoquem de forma evidente a necessidade de um SDS ou ainda, se o SDS em causa não fosse puramente qualitativo. Em termos práticos, a relevância desta questão poderá ser relativamente limitada.

Com efeito, importa ter presente que o TJUE entendeu igualmente que a restrição imposta pela Coty não constituía uma restrição grave para efeitos dos artigos 4.°, alínea b) nem do artigo 4.°, alínea c), ambos do RIC, o que deverá significar que a isenção conferida por este regulamento é suscetível de se aplicar aos diferentes tipos de acordos de distribuição abrangidos pelo mesmo, ainda que os mesmos contenham uma tal cláusula. Ora, este último aplica-se a acordos de distribuição seletiva independentemente de a mesma ser qualitativa ou quantitativa ou de saber se a natureza dos produtos em causa exige um SDS e inclui igualmente outros acordos de distribuição de cariz não-seletivo, desde que, num e noutro caso, as quotas de mercado das partes no acordo não excedam o limiar de 30%.

As empresas deveriam em qualquer caso estar sensibilizadas para a necessidade de uma análise cuidada do teor dos seus acordos de distribuição, por forma a verificarem o cumprimento de todos os critérios legais relevantes e uma aplicação coerente dos requisitos que são impostos - no âmbito do seu modelo de distribuição – no contexto da distribuição em lojas físicas e online.