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30.10.2014

Acórdão “Groupement des Cartes Bancaires”: Tribunal de Justiça reduz âmbito dos ilícitos anticoncorrenciais por objeto

O artigo 101.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) proíbe os acordos ou práticas concertadas entre empresas que tenham por objeto ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência. O objeto ou efeito anticoncorrenciais são requisitos alternativos, distinção que tem impacto na condução dos processos sancionatórios pela Comissão Europeia (e pelas autoridades nacionais de concorrência), nomeadamente no que respeita ao ónus da prova.

Nos casos em que exista um objeto anticoncorrencial, a autoridade da concorrência competente está dispensada de demonstrar que o acordo ou prática concertada tem efeitos restritivos da concorrência nos mercados afetados. Não existindo um objeto (i.e. objetivo) restritivo da concorrência, cabe àquela autoridade o ónus de fazer prova de que o acordo em causa tem um efeito negativo sensível sobre a concorrência. Nesta circunstância, a Comissão ou autoridade nacional vêem-se obrigadas a uma análise mais detalhada do acordo ou prática de modo a demonstrar os efeitos da sua implementação, tendo em conta o contexto económico em que se insere, os produtos e serviços envolvidos e a estrutura do(s) mercado(s) afetado(s).

Por conseguinte, a qualificação de uma prática anticoncorrencial como um ilícito por objeto facilita a tarefa das autoridades da concorrência em termos de prova o que se tem traduzido, nalguma da prática decisória mais recente, por um tendencial alargamento desta figura.

No entanto, num acórdão de 11 de setembro de 2014, no processo Groupement des Cartes Bancaires1, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) veio travar aquela tendência e confirmar que o conceito de ilícito anticoncorrencial por objeto deve ser interpretado restritivamente de modo a abranger apenas as práticas restritivas mais gravosas.

Em dezembro de 2002, o Groupement des Cartes Bancaires, associação que agrupa os principais bancos franceses e faz a gestão do sistema de pagamentos com cartões bancários, notificou à Comissão a introdução de um conjunto de medidas incluindo: (i) um mecanismo de “regulação da função de aquisição” segundo o qual os membros predominante ou exclusivamente emissores de cartões pagariam uma contribuição superior do que os membros que também tivessem atividades de aquisição; (ii) um aumento dos direitos de adesão cobrados a novos membros; (iii) uma taxa de “reativação de membros passivos” que visaria incentivar a aquisição de cartões.

A Comissão considerou que este conjunto de medidas constituía uma decisão de associação de empresas com um objeto restritivo da concorrência e que visava limitar a concorrência entre os bancos associados e travar a concorrência de novos operadores (como a grande distribuição, os bancos on-line e os bancos estrangeiros), conclusão que foi validada pelo Tribunal Geral (“TG”).

Mas o TJUE opôs-se ao que considerou ser uma aplicação excessivamente generosa da figura da prática restritiva por objeto, tendo julgado que este conceito deve ser interpretado restritivamente de modo a abranger apenas os tipos de conduta empresarial que sejam, pela sua própria natureza, suficientemente nocivos para a concorrência (tal como a fixação horizontal de preços por um cartel).

Segundo o TJUE, “...sob pena de dispensar a Comissão do dever de provar os efeitos concretos no mercado de acordos em que não está demonstrado que sejam pela sua natureza nocivos ao funcionamento normal da concorrência, o conceito de restrição da concorrência “por objeto” só pode ser aplicado a certos tipos de colusões entre empresas que revelem um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência para que se possa considerar que o exame dos seus efeitos não é necessário” (cfr. parágrafo 58 do acórdão).

Em consequência, o TJUE anulou a decisão recorrida e remeteu o processo ao TG para que este se pronuncie sobre se as medidas em análise tiveram efeitos restritivos da concorrência nos termos do artigo 101º, n.º 1, do TFUE.

Este recente acórdão deverá ter um impacto significativo no modo como a Comissão e as autoridades de concorrência nacionais conduzem a investigação de práticas anticoncorrenciais no futuro, desincentivando o recurso excessivo ao conceito de restrição por objeto e levando, provavelmente, a uma apreciação mais cuidadosa dos factos em cada caso tendo em vista aferir se um acordo ou prática tem efeitos negativos sobre a concorrência.

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1 Processo C-67/13, Groupement des Cartes Bancaires c. Comissão.