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30.10.2014

Acórdão do STJ: a “reabilitação” do desconto de rappel no âmbito da venda com prejuízo

Introdução

Por acórdão do passado dia 14 de maio, o pleno das secções de Criminais do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu, por unanimidade, em sede de recurso para uniformização de jurisprudência, que um revendedor tem o direito de deduzir ao preço de compra efetivo de um determinado bem o valor que lhe tenha sido pago ou creditado pelo fornecedor a título de “rappel” (para efeitos de verificação de posterior revenda “com prejuízo”).

Este acórdão surge após o Tribunal da Relação de Évora (“TRE”) ter proferido, em 2013, no espaço de menos de um mês, duas decisões contraditórias acerca da admissibilidade, para aquele efeito, de um desconto de rappel cujo primeiro escalão se iniciava em uma unidade.


As teses em confronto e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência

A oposição entre os acórdãos radicava, exclusivamente, na qualificação (ou desqualificação) do rappel como “desconto directamente relacionado com a transacção” (condição essencial para a sua relevância, na redação do DL 370/93, aplicável ao caso).

O acórdão que aceitou essa qualificação, fê-lo por entender que (i) o rappel tem sempre por objetivo incentivar o crescimento das vendas, pressupondo por isso a referência a quantidades fornecidas, (ii) o estabelecimento de escalões é a forma normal de definir quais os descontos para as quantidades definidas, à luz do aludido incentivo e (iii) a previsão de escalões é um elemento diferenciador do rappel, não sendo a sua natureza originária de desconto de quantidade desvirtuada pelo facto de o primeiro escalão se iniciar na unidade.

Já o acórdão oposto sustentou a desconsideração do rappel porquanto (i) um tal desconto abrangeria sempre quantidades previamente adquiridas pelo comprador noutras compras e vendas (e não apenas naquela que se analisa no caso concreto), (ii) um desconto cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade não seria um desconto económico, diretamente relacionado com a transação e objetivamente justificado em função daquela transação e (iii) os descontos fixos e incondicionais, aplicáveis sempre a um determinado agente económico em função do seu historial de aquisições, não seriam aceitáveis para os efeitos de cálculo do preço de custo efetivo.

O STJ rejeitou em termos inequívocos este segundo entendimento, fundamentando a sua decisão em duas grandes ideias estruturantes.

A primeira é a de que a relação que se estabelece nos dias de hoje entre um fornecedor e um distribuidor é uma relação global, de carácter permanente e não esporádico, não se reconduzindo a uma mera sucessão de compras e vendas pontuais, independentes e autónomas entre si; por conseguinte, a análise das contrapartidas negociadas entre fornecedor e distribuidor tem de ser feita à luz desta relação global, tendencialmente duradoura.

A segunda é a de que a relação de fornecimento não visa somente a satisfação do interesse do comprador em garantir a segurança e regularidade do seu abastecimento mas, igualmente, o interesse do fornecedor em assegurar o escoamento dos seus produtos, incentivando a respetiva aquisição, pelo distribuidor.

A esta luz, o STJ entendeu que um desconto de tipo “rappel”, escalonado, cujo primeiro escalão se inicia na unidade, é um desconto de quantidade e releva na determinação do preço de compra efetivo, desde que estejam satisfeitas as restantes exigências legais: (i) identificação do mesmo na fatura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento ou tabelas de preços e (ii) que o mesmo seja suscetível de determinação no momento da emissão da fatura.


Comentário

O acórdão veio estabelecer uma linha clara, precisa e inequívoca sobre o que é e não é legal em sede de apuramento do preço de compra efetivo, afastando-se de uma leitura excessivamente formalista da proibição e permitindo, dentro do quadro legal existente, uma aplicação muito mais próxima da realidade económica.

A decisão é ainda bem-vinda pelo seu timing já que decorreram escassos meses após a entrada em vigor de um novo regime das práticas individuais restritivas do comércio (em que a venda com prejuízo é, em termos práticos, a “figura” central), o qual aumentou exponencialmente o valor das coimas aplicáveis sem, contudo, eliminar inúmeras dúvidas quanto à interpretação dos principais conceitos (consequência de uma redação anterior muito pouco feliz e de uma interpretação e aplicação extremamente contestadas e voláteis), gerando enorme insegurança nos operadores económicos visados.

Embora o acórdão tenha sido dirigido à versão anterior da legislação, hoje substituída pelo artigo 5.º do DL 166/2013, a posição do STJ é seguramente aplicável à nova grafia da norma em causa, que alude a “descontos directa e exclusivamente relacionados com a transacção dos produtos em causa”. O próprio STJ se encarregou de indiciar isso mesmo ao salientar, no acórdão, que o propósito do legislador em 2013 foi, confessadamente, segundo o preâmbulo do DL 166/2013, apenas o de clarificar a noção de preço de compra efetivo, “tendo em consideração, entre outros, os descontos diferidos no tempo” (de que o rappel dito condicional é o exemplo mais evidente).

É igualmente relevante salientar que a própria Autoridade da Segurança Alimentar e Económica (“ASAE”) – que cumula, atualmente, competências fiscalizadoras, investigatórias e decisórias no que respeita às contraordenações previstas no DL 166/2013 – veio aderir de forma evidente às teses sufragadas na decisão judicial ao efetuar, prontamente, uma atualização das suas FAQ’s sobre a matéria (as quais visam servir de orientação para os operadores económicos quanto entendimento da ASAE sobre a referida legislação), alinhando-as pelo sentido definido pelo referido acórdão, nomeadamente, quanto ao conceito de desconto direta e exclusivamente relacionados com transação dos produtos em causa e quanto às condições de admissibilidade do rappel, na formação do preço de compra efetivo.