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01.03.2012

Acórdão do TJUE analisa regras aplicáveis a um cartel com efeitos num Estado-membro antes da sua adesão à U.E.

Um acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 14 de Fevereiro de 2012, em resposta a um reenvio prejudicial por um tribunal da República Checa1, veio validar a aplicação das regras nacionais de concorrência a um ilícito anticoncorrencial com efeitos naquele Estado-membro antes da sua adesão à União. Isto apesar de o mesmo ilícito (um cartel de âmbito mundial entre empresas europeias e japonesas) ter sido igualmente sancionado, ao abrigo do art. 101o do Tratado (TFUE), pela Comissão Europeia.

O caso reporta-se a um cartel no sector dos mecanismos de comutação a gás isolados, a que a Comissão Europeia aplicou coimas totalizando 750 milhões de euros em 20072.

A Comissão deu início à sua investigação em Abril de 2006 e adoptou uma decisão final em Janeiro de 2007. Por sua vez, a autoridade da concorrência checa iniciou um inquérito em Agosto de 2006, tendo adoptado uma decisão definitiva em Abril de 2007, aplicando coimas, também ela, a algumas das empresas já visadas pela Comissão. No entanto, esta autoridade nacional apenas considerou os efeitos do cartel no território da República Checa anteriores a 1 de Maio de 2004, data da sua adesão à União Europeia.

Algumas das empresas abrangidas por esta segunda decisão contestaram as coimas aplicadas pela autoridade checa invocando a preclusão das suas competências (uma vez que a Comissão iniciou o respectivo procedimento em primeiro lugar) e a violação do princípio ne bis in idem, por terem sido novamente sancionadas por um ilícito que a Comissão já havia punido (embora em termos não coincidentes).

Sobre estas questões, o Tribunal de Justiça começou por esclarecer que o art. 101o do TFUE, bem como o art. 3o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 (normas de natureza substantiva), não são aplicáveis retroactivamente «independentemente dos efeitos favoráveis ou desfavoráveis que essa aplicação possa ter para os interessados» (par. 50). Como tal, estas normas não se aplicam a um cartel cujos efeitos no território de um Estado-membro sejam anteriores ao da respectiva adesão à U.E.

Quanto à delimitação de competências entre as autoridades nacionais e a Comissão, o TJUE confirmou que a abertura de um processo pela Comissão preclude a competência das autoridades dos Estados-membros para aplicarem, aos mesmos factos, não apenas o art. 101o do TFUE mas também a legislação nacional em matéria de concorrência (art. 11o, n.o 6, do Regulamento (CE) n.o 1/2003). No entanto, o Tribunal considerou que aquela circunstância não priva «de forma permanente e definitiva, as autoridades nacionais da concorrência da sua competência para aplicar [aquela] legislação nacional», sendo essa competência «reactivada a partir do momento em que o processo instaurado pela Comissão está concluído» (parágrafos 79 e 80). Por conseguinte, considerou-se, no caso, que a autoridade da concorrência checa tinha competência para aplicar o direito nacional aos efeitos anti-concorrenciais do cartel verificados no seu território antes da adesão à União.

Por último, o TJUE recusou que a coexistência das duas decisões sancionatórias acarretasse uma violação do princípio ne bis in idem por considerar, nomeadamente, não ser idêntica – quer na dimensão territorial quer na dimensão temporal – a factualidade abrangida por cada uma delas. A Comissão Europeia analisou apenas os efeitos do cartel no interior da Comunidade Europeia e no Espaço Económico Europeu, e desconsiderou, para efeitos de cálculo do montante das coimas, os Estados que aderiram à União em 1 de Maio de 2004. Já a autoridade checa terá punido apenas as consequências do cartel ocorridas no seu território e anteriores àquela data, não se verificando portanto, nessa medida, sobreposição entre ambas as decisões.

Esta diferenciação entre o âmbito factual das decisões em análise revela-se, contudo, algo artificial tendo em conta que, no plano geográfico, a Comissão qualificou o ilícito como um cartel de dimensão mundial e, no plano temporal, concluiu pela existência de uma infracção continuada que apenas cessou a 11 de Maio de 2004 (já depois da adesão da Europeia).

Este artigo é da autoria do advogado Gonçalo Machado Borges.

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1 Processo C-17/10 – Toshiba Corporation e outros c. Urad pro ochranu hospodarske souteze.
2 Processo COMP/F/38.899 – decisão C(2006) 6762 final, de 24.01.2007.