31.01.2017
Acórdão do Tribunal Constitucional dividido quanto ao efeito não suspensivo dos recursos sobre decisões condenatórias da Autoridade da Concorrência
Introdução
Nos termos da Lei n.° 19/2012 (Lei da Concorrência), o recurso de impugnação judicial de decisões da Autoridade da Concorrência não tem, regra geral1, efeito suspensivo (artigo 84.°, n.° 4 da Lei da Concorrência). Assim, o destinatário de uma decisão que aplique uma coima (ou outra sanção) deve, em princípio, pagar a coima mesmo que impugne a decisão perante o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão2 (Tribunal da Concorrência). Este Tribunal apenas pode suspender os efeitos de decisões sancionatórias se: (i) tal suspensão for requerida pela empresa visada no momento da impugnação judicial, (ii) a execução da decisão causar «prejuízo considerável» à empresa visada, e (iii) a empresa prestar «caução em substituição» no prazo fixado pelo Tribunal (artigo 84.°, n.° 5, da Lei da Concorrência).
Deste modo, o atual regime veio reverter a regra geral prevista no anterior diploma legal (Lei n.° 18/2003), nos termos da qual a impugnação judicial de decisões sancionatórias suspendia os efeitos da decisão (artigo 50.°, n.°1, da antiga Lei da Concorrência), distinguindo-se também da solução prevista no regime geral aplicável aos ilícitos criminais e administrativos, bem como do previsto em vários regimes regulatórios sectoriais.
Esta alteração visou, essencialmente, servir de desincentivo à apresentação de ações judiciais infundadas, motivadas por razões puramente dilatórias. No contexto mais vasto da reformulação da Lei da Concorrência, que introduziu também a previsão de reformatio in peius, concedendo ao Tribunal da Concorrência a possibilidade de agravar as coimas aplicadas pela Autoridade (artigo 88.°, n.°1, da Lei da Concorrência), o legislador procurou ainda reforçar a eficácia e celeridade da aplicação e execução das regras concorrenciais, através da sua autonomização face ao regime geral aplicável aos ilícitos criminais e administrativos e da aproximação ao mecanismos procedimentais previstos no Direito da União Europeia3, conforme acordado pelo Governo nos termos do Programa de Assistência Económica e Financeira.
Todavia, atenta, em particular, a frequente dimensão punitiva das coimas aplicadas pela Autoridade da Concorrência, estas alterações legislativas vêm sendo criticadas por violarem direitos fundamentais garantidos na Constituição, em particular a garantia da presunção de inocência (artigo 32.°, n.° 2, da Constituição) e os direitos de acesso aos tribunais e à proteção judicial efetiva (artigos 20.°, n.°1, e 268.°, n.°4, da Constituição).
Em dois recentes processos, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela primeira vez sobre esta questão. Contudo, enquanto no Acórdão n.° 376/2016, de 8 de junho de 2016, a 3.ª Secção deste Tribunal considerou que o regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, não violava os direitos fundamentais em causa, no Acórdão n.° 674/2016, de 13 de dezembro de 2016, a 1.ª Secção do mesmo Tribunal subscreveu a posição oposta.
Contexto
Ambos os processos tinham por base decisões sancionatórias da Autoridade da Concorrência, nos termos das quais a Autoridade aplicou coimas por prestação de respostas incompletas a pedidos de informação4, o que constitui uma contraordenação nos termos do artigo 68.°, n.° 1, alínea i), da Lei da Concorrência. As empresas visadas impugnaram judicialmente as decisões perante o Tribunal da Concorrência e requereram a atribuição de efeito suspensivo aos seus recursos, alegando que o regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, infringia os seus direitos fundamentais. Alternativamente, ofereciam ainda a caução exigida nos termos do n.°5 do mesmo artigo.
Em ambos os casos, o Tribunal da Concorrência concluiu que o regime dos n.os 4 e 5 do artigo 84.° da Lei da Concorrência violava direitos fundamentais, em particular os direitos de acesso aos tribunais e à proteção judicial efetiva, uma vez que não se previa a possibilidade de atribuição discricionária de efeito suspensivo, e ainda por essa atribuição estar dependente de prestação de caução em substituição, independentemente da situação financeira da empresa visada. Em consequência, acolheu a alegação das visadas e recusou a aplicação do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, suspendendo os efeitos das decisões recorridas até à realização do julgamento, com base no regime geral dos ilícitos administrativos (i.e., sem exigir a prestação de qualquer caução).
O Ministério Público recorreu das duas decisões do Tribunal da Concorrência para o Tribunal Constitucional.
O Acórdão n.º 376/2016 da 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
No Acórdão de 8 de junho de 2016, a 3.ª Secção do Tribunal Constitucional concluiu que o artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, não violava os direitos fundamentais invocados, em particular de acesso aos tribunais e à proteção judicial5, porquanto:
- O direito à proteção judicial efetiva não se traduzia numa regra geral segundo a qual as ações judiciais contra decisões sancionatórias administrativas devem ter sempre efeito suspensivo, dispondo o legislador de uma ampla margem de liberdade na regulação do procedimento de acesso aos tribunais que apenas poderia ser posta em causa perante dificuldades excessivas ou iniquidades materiais;
- A escolha legislativa constante do artigo 84.°, n.° 4, da Lei da Concorrência, pela regra geral de atribuição de efeito meramente devolutivo, não poderia ser considerada injusta ou irrazoável, visto que prosseguia o interesse público na eficácia das regras concorrenciais através do desincentivo à apresentação de ações judiciais infundadas e meramente dilatórias, que comprometeriam a defesa desse interesse; e
- A possibilidade, prevista no n.° 5 desse artigo, de suspensão dos efeitos de uma decisão sancionatória, cuja execução causaria «prejuízo considerável» ao visado, e mediante prestação de caução, pela forma e montante julgados adequados ao caso concreto pelo Tribunal, serviria como “válvula de escape”, retirando rigidez e automaticidade ao sistema, na medida em que permitiria equilibrar o interesse público e o interesse individual e, ainda, mitigar os riscos de violação do direito à proteção judicial (caso a decisão viesse a ser anulada) sem comprometer a eficácia da coima (caso a decisão fosse confirmada).
Em consequência, a 3.ª Secção deste Tribunal deferiu o recurso do Ministério Público e ordenou o Tribunal da Concorrência a emendar a sua sentença.
O Acórdão n.º 674/2016 da 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
Em contraste, no Acórdão proferido a 13 de dezembro de 2016, a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional concluiu que o regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, infringia direitos fundamentais, em particular o direito de acesso aos tribunais e à proteção judicial efetiva, porque:
- O regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, ao fazer depender a atribuição de efeito suspensivo da existência de um “prejuízo considerável” e da prestação de caução em substituição, está, essencialmente, a obrigar o visado a pagar (pelo menos parcialmente) a coima antes da impugnação judicial, obrigando-o portanto a incorrer (pelo menos parcialmente) num prejuízo considerável; deste modo, está já a restringir o direito de acesso aos tribunais e à proteção judicial;
- Esta restrição é desproporcional e, consequentemente, violadora dos referidos direitos: ainda que adequada a atingir o fim proposto (maior eficácia das regras concorrenciais), ao desincentivar à apresentação de ações judiciais infundadas com intuitos meramente dilatórios, esta medida não se limitava à medida do indispensável para a prossecução desse fim, visto que, em primeiro lugar, o efeito dissuasor já resultava da introdução da possibilidade de reformatio in peius e, em segundo, existiam outras medidas, menos restritivas, e igualmente eficazes;
- Em particular, e desde logo, o regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência — ao não permitir que o juiz dispense o visado de prestar caução e ao não prever qualquer margem de discricionariedade quanto ao montante dessa caução, que deve sempre corresponder ao montante da coima aplicada —, seria menos restritivo se abdicasse dessa rigidez e automaticidade em favor da concessão de uma margem de discricionariedade ao juiz; e
- Mesmo que se pudesse concluir pela necessidade desta restrição fundamental, ainda assim o sistema seria desproporcional em sentido estrito (excessividade), designadamente por não prever a possibilidade do juiz valorar uma eventual insuficiência dos recursos financeiros das empresas visadas para prestação da caução, impedindo assim esta empresa de beneficiar do efeito suspensivo.
Em resultado, a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional indeferiu o recurso do Ministério Público e confirmou a decisão do Tribunal da Concorrência.
Comentário
A decisão de 13 de dezembro de 2016, ao abrigo da qual a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade do sistema previsto no artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, é de saudar e marca uma importante inversão da posição adotada no Acórdão da 3.ª Secção, de 8 de junho de 2016.
Um sistema que, por regra, permite a execução de coimas potencialmente drásticas antes da conclusão da apreciação judicial da decisão que a aplica, e que apenas permite a suspensão dessa execução se a mes ma causaria um “prejuízo considerável” ao visado e caso este preste caução, independentemente da suficiência dos seus recursos financeiros para o efeito, constitui uma restrição excessiva da garantia da presunção de inocência e do direito à proteção judicial efetiva, em particular se considerado conjuntamente com a possibilidade de reformatio in peius.
Acresce que a própria motivação legislativa, no sentido de desincentivar a apresentação de ações infundadas e meramente dilatórias, não aparenta constituir uma justificação válida, na medida em que apenas seria eficaz caso os dados empíricos existentes apontassem para a existência de um número significativo de recursos apresentados com essas características. Contudo, e pelo contrário, a verdade é que se vem verificando, nos últimos anos, uma tendência para a revogação (total ou parcial) de um número considerável das decisões sancionatórias da Autoridade, em particular em casos de maior notoriedade. Adicionalmente, a experiência de outros Estados Membros com um sistema semelhante do recurso de impugnação das decisões sancionatórias da respetiva autoridade da concorrência (e.g., a Alemanha) sugere que a atribuição de efeito suspensivo não afeta a eficácia das sanções impostas.
O Acórdão de dezembro de 2016 merece elogio, não apenas pelas suas conclusões, mas também pelo detalhe com que analisa o regime do artigo 84.°, n.os 4 e 5, da Lei da Concorrência, à luz do princípio da proporcionalidade, análise essa que contrasta com o exame superficial que guiou o Acórdão de junho de 2016. De facto, apesar da indispensabilidade da eficácia das sanções aplicadas pela violação de normas concorrenciais, e ainda que o legislador goze de uma ampla margem de liberdade na definição da forma de acesso aos tribunais, a solução encontrada deve ser sujeita ao mais apertado escrutínio sempre que redundar na restrição de direitos fundamentais dos visados.
É ainda interessante notar que as distintas conclusões da 3.a e 1.a Secção do Tribunal Constitucional parecem basear-se numa distinta interpretação do n.º 5 do citado artigo 84.º. Enquanto a 3.a Secção entendeu que esta norma permitia ao juiz estabelecer, de acordo com critérios de adequabilidade e de equilíbrio de interesses, a forma e montante da caução a prestar (funcionando assim como “válvula de escape”), a 1.a Secção considerou que a mesma norma era rígida e automática, retirando ao juiz qualquer discricionariedade (e.g., quanto ao montante da caução, que teria que corresponder ao da coima aplicada), exceto no tocante ao prazo para prestação dessa caução. Em todo o caso, mesmo com base na interpretação da 3.a Secção, o artigo 84.º, n.º 5, da Lei da Concorrência, não permitiria, ainda assim, a atribuição de efeito suspensivo nos casos de inexistência de “prejuízo considerável” ou, independentemente desse requisito, se o visado não prestasse caução, mesmo nos casos de manifesta ilegalidade da decisão da Autoridade.
No entanto, o Acórdão de 13 de dezembro de 2016 ainda não é definitivo. Dado que as suas conclusões sobre a constitucionalidade do artigo 84.º, n.º 4, 5, contradizem as do Acórdão de 8 de junho de 2016, seria, em princípio, objeto de recurso obrigatório, pelo Ministério Público, ao Plenário do Tribunal Constitucional (artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei n. ° 28/82), composto por todos os 13 juízes. Pelas razões acima expostas, a interpretação subscrita no Acórdão de 13 de dezembro de 2016 deve prevalecer. O facto de o Acórdão de 8 de junho de 2016 ter sido apoiado por todos os 5 juízes, conquanto o Acórdão de 13 de dezembro de 2016 resultou de uma decisão de maioria de 3 votos a 2, não indica necessariamente um resultado indesejável, dado que 3 dos 5 juízes que apoiaram o Acórdão de 8 de junho de 2016 foram substituídos entretanto, após o termo dos seus mandatos.
A decisão de 13 de dezembro de 2016, ao abrigo da qual a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade do sistema previsto no artigo 84.º, n.os 4 e 5 da Lei da Concorrência, é de saudar e marca uma importante inversão da posição adotada no Acórdão de 8 de Junho de 2016.
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1 A única exceção a esta regra está prevista para as decisões que apliquem medidas de caráter estrutural consideradas indispensáveis para pôr fim às práticas restritivas ou aos seus efeitos, tendo em conta o seu carácter frequentemente irreversível.
2 O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão é o tribunal competente, em primeira instância, para apreciar os recursos de impugnação judicial das decisões da Autoridade da Concorrência (artigo 84.°, n.° 3, da Lei da Concorrência).
3 Artigo 278.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e artigo 31 do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho.
4 Processos n.os INC/2015/1 (Peugeot Portugal Automóveis) e INC/2015/2 (Ford Lusitana). Os pedidos de informação em causa foram requeridos na sequência de uma série de investigações levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência em face de suspeitas de violação do artigo 9.° da Lei da Concorrência e do artigo 101.° do TFUE, decorrentes da celebração de acordos entre fabricantes de automóveis e respetivos intermediários/agentes comerciais e oficinas, nos termos dos quais os consumidores não poderiam beneficiar da garantia do fabricante caso tivessem recorrido a oficinas não licenciadas para a manutenção e reparação dos seus veículos. Todas as investigações foram arquivadas na sequência de um compromisso assumido pelas empresas visadas no sentido de pôr fim à prática sob investigação.
5 O presente comentário limita-se a sumarizar as principais considerações tecidas pelo Tribunal Constitucional quanto aos direitos fundamentais nos quais se a sua análise centrou.