29.05.2018
Alerta importante para o setor público – o TJUE reconfirma a aplicabilidade das regras europeias em matéria de auxílios de Estado a transações entre Empresas Públicas
Acórdão de 18 de maio de 2017, Fondul Proprietatæ SA, C-150/16, EU:C:2017:388.
O processo diz respeito a duas empresas romenas envolvidas na produção de eletricidade, Eletrocentrale (ELC) e Oltenia (OLT). O Estado romeno detinha a totalidade do capital social da ELC e a maioria do da OLT. As restantes participações da OLT eram detidas pela Fondul, um fundo de investimento privado. A ELC encontrava-se (aparentemente) em dificuldades financeiras e não tinha capacidade para reembolsar um empréstimo, que lhe tinha sido concedido pela OLT. Por isso, a ELC ofereceu à OLT a transmissão de uma das suas centrais elétricas para efeitos do reembolso, o que a OLT aceitou por deliberação da assembleia geral de acionistas, isto é, com os votos do acionista maioritário, o Estado romeno. Fondul, o acionista minoritário “derrotado” em sede da assembleia, alegou que a central elétrica não era lucrativa e que a sua transmissão para efeitos do reembolso do empréstimo apenas beneficiava a ELC que, livre do fardo do empréstimo e da central elétrica, não tinha de pedir a declaração de insolvência e consequentemente abandonar o mercado. Com base nestas submissões, a Fondul solicitou a um tribunal nacional que declarasse a deliberação da assembleia geral da OLT inválida. O tribunal suspendeu o processo e colocou uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), sobre se e em que condições a deliberação contestada constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, que estaria sujeito às obrigações de notificação e de standstill do artigo 108.º, n.º 3, do TFUE.
No seu acórdão, o TJUE reiterou que, para, que a deliberação constitua auxílio de Estado na aceção do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, deve ser imputável ao Estado conferir uma vantagem económica seletiva a uma empresa que seja financiada através de recursos do Estado e ser apta a distorcer a concorrência e a afetar o comércio entre os Estados-Membros. O TJUE concluiu que, se todas essas condições estiverem preenchidas e a deliberação seja, por isso, qualificada como um auxílio de Estado, deveria ter sido realizada apenas se e após notificação e aprovação pela Comissão Europeia (Comissão), de acordo com o artigo 108.º, n.º 3, do TFUE.
O acórdão Fondul (re)confirma que a proibição de auxílios de Estado do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, também se aplica a transações entre empresas públicas. Esta constatação já decorre das duas considerações seguintes: em primeiro lugar, tal como é exigido pelo princípio da neutralidade quanto à natureza da propriedade – consagrado no artigo 345.º do TFUE –, o artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, aplica-se independentemente de a empresa beneficiária pertencer ao setor público ou setor privado; em segundo lugar, o requisito de, que para haver auxílio de Estado, a vantagem conferida à empresa beneficiária ter de ser concedida através de recursos estatais, também se verifica se a vantagem não for financiada a partir do orçamento do Estado, mas a partir de outros recursos controlados pelo Estado, como os recursos de empresas detidas ou de alguma forma, controladas pelo Estado (empresas públicas).
Portanto, é possível que o Estado conceda um auxílio (de Estado) a uma empresa pública através de outra empresa pública. Consequentemente, qualquer transação – que diga respeito, por exemplo, à compra, venda ou transferência de bens, ou à prestação de serviços, capital ou financiamento – entre empresas públicas – incluindo, em princípio, transações intragrupo entre a empresa-mãe e uma subsidiária ou entre subsidiárias da mesma empresa-mãe – poderá consubstanciar um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE.
Apesar de estas constatações já decorrerem dos supracitados princípios e de acórdãos anteriores, em particular da decisão emblemática no caso Stardust Marine (1), a sua reconfirmação no acórdão Fondul é, todavia, muito importante. Visto que os acórdãos e decisões relativos a auxílios de Estado, que dizem respeito a transações entre empresas públicas são raros, existe, por vezes, uma consciência menor, da parte das empresas públicas, das possíveis implicações em matéria de auxílios de Estado das suas relações comerciais mútuas. Tal consciência é, contudo, crucial, dadas as possíveis consequências da violação de regras europeias em matéria de auxílios de Estado.
A violação do artigo 108.º, n.º 3, do TFUE, na concessão de auxílios de Estado, isto é, sem a aprovação pela Comissão (2), torna os atos jurídicos subjacentes (no caso de transações: o(s) contrato(s) subjacente(s)) inválidos ex tunc e obriga os tribunais nacionais, a pedido de um terceiro interessado (por exemplo, um concorrente), a retirar todas as consequências dessa invalidade e a ordenar o Estado a recuperar o auxílio (incluindo juros) da empresa beneficiária (3). Se, por exemplo, no caso Fondul, a transmissão da central elétrica para efeitos do reembolso do empréstimo consubstanciou um auxílio de Estado para a ELC, a deliberação da assembleia geral da OLT, e, portanto, a transmissão da central elétrica e a extinção da dívida da ELC, poderão ser nulas. Em tal caso, a ELC poderá estar insolvente e poderia já ter estado insolvente no momento da deliberação (dadas as suas aparentes dificuldades financeiras), do que resulta que a OLT poderá ver impossibilitada a cobrança (no todo ou em parte) do reembolso do empréstimo. Tal cenário poderá também gerar consequências para os gestores da beneficiária do auxílio insolvente. Nos regimes de insolvência de alguns ordenamentos jurídicos a omissão do pedido de insolvência pelos gestores de uma sociedade considerada materialmente insolvente consubstancia uma infração penal e os gestores ficam pessoalmente responsáveis pelas dívidas da sociedade a partir do momento em que esta é considerada insolvente.
À luz do exposto, o acórdão Fondul é um alerta para a importância das empresas públicas verificarem o cumprimento das regras europeias em matéria de auxílios de Estado. também no que diz respeito a transações com outras empresas públicas. Isto exige, antes de mais, uma análise sobre se a transação em causa envolve auxílios de Estado, o que não será o caso, por exemplo, se a decisão da empresa pública em participar numa transação não for atribuível ao (isto, é, não for influenciada pelo) Estado (mas uma pura decisão de gestão) ou se um operador privado numa situação semelhante à do Estado teria participado nessa transação nos mesmos termos e condições (princípio do operador privado)(4). Esta análise é mais complexa no caso de transações entre empresas públicas do que no caso entre empresas públicas e privadas, porque as transações entre empresas públicas podem consubstanciar um auxílio de Estado para qualquer uma das partes. No caso Fondul, a transmissão da central elétrica no lugar do reembolso do empréstimo poderia, em teoria, constituir um auxílio de Estado a favor da OLT, em vez de um auxílio de Estado a favor da ELC, por exemplo, se o valor da central elétrica excedesse significativamente o montante do empréstimo. Concorrentes de empresas públicas, por outro lado, poderão ser motivadas, pelo acórdão Fondul, a monitorizar o mercado também em relação a benefícios indevidos conferidos aos seus concorrentes públicos de entidades do mesmo grupo ou de outras empresas públicas, dado que este acórdão reconfirma que a “espada afiada” do artigo 108.º, n.º 3, do TFUE também está disponível neste contexto.
Qualquer transação – que diga respeito, por exemplo, à compra, venda ou transferência de bens ou à prestação de serviços, capital ou financiamento – entre empresas públicas – incluindo, em princípio, transações intragrupo entre a empresa-mãe e uma subsidiária ou entre subsidiárias da mesma empresa-mãe – poderá consubstanciar um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE. Transações entre empresas públicas podem consubstanciar um auxílio de Estado para qualquer uma das partes.
A violação do artigo 108.º, n.º 3, do TFUE torna os contrato(s) subjacente(s) inválidos ex tunc e obriga os tribunais nacionais, a pedido de um concorrente, a retirar todas as consequências dessa invalidade e a ordenar o Estado a recuperar o auxílio (incluindo juros) da empresa beneficiária. Em certas circunstâncias, a invalidade dos contratos poderá levar à insolvência da empresa beneficiária e, em tal caso, à responsabilidade penal e civil dos seus gestores.
O acórdão Fondul é um alerta para a importância das empresas públicas verificarem o cumprimento das regras europeias em matéria de auxílios de Estado também no que diz respeito a transações com outras empresas públicas, bem como uma reconfirmação para concorrentes de empresas públicas de que a “espada afiada” do artigo 108.º, n.º 3, do TFUE também está disponível neste contexto.
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(1) Acórdão de 16 de maio de 2002, França c. Comissão (Stardust Marine), C-482/99, EU:C:2002:29
(2) Isto é, o auxílio não foi individualmente aprovado por uma decisão da Comissão e não preenche os requisitos de alguma das isenções gerais do regime do artigo 108.°, n.° 3, do TFUE, como o Regulamento de minimis e o Regulamento que estabelece isenções por categoria.
(3) Acórdão de 12 de fevereiro de 2008, CELF e ministre de la Culture e de la Communication, C-199/06, EU:C:2008:79.
(4) Se a presença de auxílio de Estado não pode ser excluída, é necessário avaliar, num segundo passo, se o auxílio está sujeito às obrigações de notificação e de standstill do artigo 108.°, n.° 3, do TFUE.