22.01.2019
Algumas tendências recentes no cruzamento entre privacidade e direito na concorrência
Introdução
Pela sua própria natureza, as investigações de práticas restritivas da concorrência implicam alguma tensão entre os diferentes e por vezes opostos interesses envolvidos, em particular, o dever público de se investigarem infrações e o respeito pela privacidade. Tanto a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“Convenção”) como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (“Carta”) reconhecem que qualquer pessoa tem direito ao respeito pela sua vida privada e pelo seu domicílio. Mas há mais do que isso. À medida que a era digital evolui rapidamente, há uma vertente específica da privacidade que se torna cada vez mais relevante, não apenas como forma de comunicação para pessoas e empresas, mas igualmente como instrumento de investigação para as autoridades de concorrência: a noção de “correspondência”.
Ao menos de um ponto de vista literal, o artigo 8.° da Convenção e o artigo 7.° da Carta colocam a proteção da correspondência, por um lado, e o respeito pela vida privada e pelo domicílio, por outro, em pé de igualdade. Um conjunto de decisões adotadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), incluindo o recente acórdão Bărbulescu proferido em setembro de 2017, ajudam a clarificar de que modo as formas tradicionais e modernas de comunicação estão protegidas contra interferências ilegítimas por parte de entidades públicas e privadas.
Jurisprudência do TEDH
O ponto de partida para este debate é o n.° 2 do artigo 8.° da Convenção, que não existe no correspondente artigo 7.° da Carta. De acordo com a referida norma, «[n]ão pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.».
O TEDH foi chamado a pronunciar-se sobre o artigo 8.° em várias ocasiões e a respeito de distintos e por vezes extremos cenários, que vão da monitorização de e-mails, telefonemas e utilização da Internet(1) à videovigilância(2). A maioria destes processos surge no contexto de relações entre trabalhadores e as suas entidades patronais. Porém, existem muitos outros, também ao abrigo do artigo 8.°, nos quais o TEDH se ocupou diretamente de diligências de busca e apreensão, por autoridades públicas (incluindo autoridades de concorrência), visando documentos em diferentes formatos localizados nas instalações de empresas(3).
De forma sumária, existem essencialmente três grandes conclusões a retirar desta jurisprudência.
Em primeiro lugar, a noção de “domicílio” do artigo 8.0 da Convenção abrange, não só a residência privada de uma pessoa singular, mas também a sede de uma empresa ou, em geral, qualquer estabelecimento comercial.
Em segundo lugar, quaisquer comunicações feitas por uma pessoa, seja na sua residência seja no respetivo local de trabalho, e independentemente da natureza profissional ou pessoal e do suporte (físico ou eletrónico) dessas comunicações, estão cobertas pelo conceito de “correspondência”.
Finalmente, a busca e apreensão de comunicações, designadamente levada a cabo por uma entidade pública, constitui uma interferência no direito ao respeito pelo “domicílio” e pela “correspondência” do visado, tal como garantido pelo artigo 8.0 da Convenção.
Por que motivo e em que termos é isto relevante em procedimentos de direito da concorrência?
Existe um princípio basilar no direito da União Europeia (União), de acordo com o qual todas as provas recolhidas em procedimentos jurídicos conduzidos pelos Estados-Membros ou pelas instituições da União, compreendendo naturalmente também as investigações de concorrência, têm de respeitar os direitos fundamentais dos visados(4).
O direito da União não pode, por conseguinte, admitir provas obtidas em desrespeito do procedimento previsto para as recolher e que é destinado a proteger direitos fundamentais dos envolvidos. O recurso a esse procedimento é, portanto, considerado uma formalidade essencial, na aceção do n.0 2 do artigo 263.0 do Tratado sobreo Funcionamento da União Europeia e, como resulta de jurisprudência pacífica, a violação de uma formalidade essencial afeta a validade do ato viciado, sem necessidade de se averiguar se daí resultam prejuízos para quem a invoca(5).
Em matéria de direitos fundamentais, importa ainda recordar que, nos termos do primeiro parágrafo do n.0 1 do artigo 6.0 do Tratado da União Europeia, a Carta tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Adicionalmente, o n.° 3 do artigo 52.° da Carta determina que, se a Carta contiver direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos pela Convenção. Os tribunais da União precisaram já que o sentido e o âmbito dos direitos assim garantidos devem ser determinados, não apenas pelo texto da Convenção, mas também pela jurisprudência do TEDH(6).
Em termos práticos, isto significa que, por a apreensão de comunicações implicar, aos olhos do TEDH, uma ingerência no exercício do direito garantido pelo artigo 8.°, n.° 1, da Convenção, ela constitui igualmente uma limitação ao direito correspondente consagrado no artigo 7.° da Carta. Por outro lado, isto também significa que as condições a que deve obedecer essa interferência para ser legítima são as que decorrem do artigo 8.°, n.° 2, da Convenção, tal como aplicadas pelo TEDH.
Ao fazer esta análise, o TEDH confirma tipicamente se a interferência:
(i) é permitida por lei;
(ii) prossegue um objetivo legítimo; e
(iii) é proporcional face a tal objetivo.
Estes requisitos têm de ser analisados numa base casuística, mas mesmo o cumprimento da primeira e mais essencial dessas condições – respeitante à existência de uma base legal que legitime a ingerência – pode suscitar mais dúvidas do que seria imaginável.
Por exemplo, em Portugal o regime jurídico da concorrência (Lei n.° 19/2012, de 8 de maio) não contém qualquer norma que permita à Autoridade da Concorrência (“Autoridade”) apreender correspondência enquanto tal; apenas lhe é permitido apreender documentação, independentemente do seu suporte. Durante vários anos ao abrigo da anterior lei da concorrência (aprovada em 2003), tanto a Autoridade como os tribunais nacionais consideravam que uma carta ou um e-mail que tivesse sido previamente aberto pelo seu destinatário não deveria qualificar-se como uma comunicação, mas antes como um documento. Contudo, esta posição tornou-se bem mais questionável, especialmente a partir da entrada em vigor da lei do cibercrime (Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro).
Este último diploma legislativo transpõe para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.° 2005/222/JAI, do Conselho de 24 de fevereiro de 2005, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. A Lei n.° 109/2009 tem, pois, um vasto alcance e ela contém, na verdade, a disciplina jurídica geral aplicável à recolha de prova digital em Portugal, conforme resulta dos seus artigos 1.° e 11.°. Em particular, o artigo 17.° da mencionada lei determina de forma clara que a apreensão de mensagens de correio eletrónico só é possível nos termos em que é autorizada a apreensão de correspondência (isto, independentemente de tais mensagens terem sido abertas pelo destinatário original ou permaneçam por abrir no momento em que é realizada a busca).
Assim, atualmente os e-mails estão protegidos pelo segredo da correspondência ditado diretamente pela Constituição Portuguesa e apenas podem ser apreendidos se existir uma previsão legal que o permita e se tal apreensão for ordenada por um juiz. Nenhuma destas exigências se acha satisfeita pelo regime jurídico da concorrência, o que torna difícil conciliar o exercício de uma tradicional prerrogativa de investigação das autoridades de concorrência com o respeito à privacidade nos termos da Convenção e da Carta, conforme interpretadas pelo TEDH e pelos tribunais da União.
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(1) Decisões nos processos: 61496/08 Bărbulescu v. Romania, 05.09.2017; 39315/06 Telegraaf Media Nederland Landelijke Media B.V. and Others v. the Netherlands, 22.11.2012; 62617/00 Copland v. the United Kingdom, 03.04.2007; 54934/00 Weber and Saravia v. Germany, 29.06.2006; e 20605/92 Halford v. the United Kingdom, 25.06.1997. Veja-se igualmente a queixa pendente n.° 588/13 Libert v. France.
(2) Decisão no processo 420/07 Köpke v. Germany, 05.10.2010. Existe ainda um importante caso a aguardar decisão: queixa n.° 70838/13 Antović and Mirković v. Montenegro.
(3) Decisões nos processos: 63629/10 e 60567/10 Vinci Construction et GTM Génie Civil et Services c. France, 02.04.2015; 74336/01 Wieser and Bicos Beteiligungen GmbH v. Austria, 16.10.2007; 50882/99 Petri Sallinen and Others v. Finland, 27.09.2005; 41604/98 Buck v. Germany, 28.04.2005; 33400/96 Ernst et Autres c. Belgique, 15.07.2003; e 37971/97 Société Colas Est and Others v. France, 16.04.2002.
(4) Cf., inter alia, Acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi and Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, processos apensos C-402/05 P e C-415/05 P, EU:C:2008:461, §§ 281-284 e jurisprudência aí citada, acedido e disponível em curia.europa.eu.
(5) Acórdão de 6 de abril de 2000, Commission/ICI, C-286/95, EU:C:2000:188, §§ 42-52, acedido e disponível em curia.europa.eu.
(6) Acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB, C-279/09, EU:C:2010:811, § 35, acedido e disponível em curia.europa.eu.
(7) Ver, neste sentido, acórdão de 5 de outubro de 2010, McB., C-400/10 PPU, EU:C:2010:811, § 53 e acórdão de 15 de novembro de 2011, Dereci and others, C-256-11, EU:C:2011:734, § 70, acedidos e disponíveis em curia.europa.eu.