Introdução
A Autoridade da Concorrência (“AdC”) passou a dispor de novos estatutos, com a recente entrada em vigor, a 1 de setembro, do Decreto-Lei n.º 125/2014, de 18 de agosto.
O diploma regista alterações relevantes face aos anteriores estatutos — definidos pelo Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro —, mas, como seria de esperar, não se afasta muito da disciplina jurídica da lei-quadro das entidades administrativas independentes, aprovada pela Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, ainda na égide do programa de assistência económica e financeira. Vale a pena analisar de perto algumas das principais modificações.
Organização interna
No plano dos órgãos e quadros da AdC, as novidades de maior relevo decorrem fundamentalmente da adaptação que foi feita às novas regras que resultam da lei-quadro das entidades reguladoras.
Em primeiro lugar, num esforço de accountability que nos parece de saudar, a designação dos membros do conselho de administração da AdC passa a ter de obedecer a um conjunto de exigências de forma e de substância, que reforçam a legitimidade e independência de quem desempenha estas importantes funções.
Em termos práticos, esses membros são escolhidos de entre pessoas com reconhecida idoneidade, competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas. O processo de nomeação contempla uma audição parlamentar prévia e fica concluído com a respetiva indigitação por meio de resolução fundamentada do Conselho de Ministros. Em caso de designação simultânea de dois ou mais membros do conselho, o termo dos respetivos mandatos deve divergir pelo menos seis meses, procurando, por esta via, assegurar-se a convivência de diferentes sensibilidades e experiências no órgão de cúpula da AdC. Outra novidade é a necessidade de o provimento do presidente garantir a alternância de sexos e de o provimento dos vogais assegurar uma representação mínima de 33% de cada género.
Os mandatos dos membros do conselho passam a ter uma duração de 6 anos e a não ser renováveis. Nos atuais mandatos a duração é de 5 anos, renovável uma vez. Ao abrigo dos novos estatutos, os atuais mandatos mantêm-se em curso pela duração inicialmente definida, mas deixa de haver possibilidade de renovação.
O segundo aspeto que nos parece de assinalar em matéria de organização será aquele onde se regista porventura maior diferenciação face aos anteriores estatutos.
Nos termos dos estatutos de 2003, os membros do conselho da AdC não podiam, nos dois anos seguintes à cessação do seu mandato, estabelecer qualquer vínculo ou entrar em qualquer relação profissional, remunerada ou não, com entidades que durante esse período tivessem participado em operações de concentração de empresas sujeitas a jurisdição da AdC ou que tivessem sido objeto de processos de contraordenação por comportamentos restritivos da concorrência. Como forma de compensar este impedimento, os membros do conselho tinham direito, justamente nos dois anos seguintes à cessação do seu mandato, a um subsídio equivalente a dois terços da respetiva remuneração, cessando esse abono a partir do momento em que fossem contratados ou nomeados para o desempenho, remunerado, de qualquer função ou serviço público ou privado.
No quadro dos novos estatutos, o leque de incompatibilidades e impedimentos foi significativamente reforçado, não apenas ao nível do conselho, mas também dos restantes quadros da AdC (titulares de cargos de direção ou equiparados e trabalhadores), a ponto de algumas opções poderem mesmo ser questionadas da perspetiva da sua proporcionalidade face a outros direitos conflituantes.
A título de exemplo, todos os colaboradores da AdC (membros do conselho, diretores ou equiparados e trabalhadores) estão hoje impedidos de deter, durante o período em que exercem funções, quaisquer participações sociais ou interesses com qualquer empresa ou associação de empresa. Em tese, admite-se que este constrangimento possa fazer sentido no caso de autoridades reguladoras setoriais, especialmente se a proibição for erigida face às empresas reguladas no setor em causa. Todavia, no caso da AdC ¬— que nem sequer é uma verdadeira autoridade reguladora clássica — a aplicação prática desta regra, em toda a sua extensão, parece ir claramente além do que seria necessário, adequado e proporcional face às exigências de independência e imparcialidade.
Mais. Entre os membros do conselho, por um lado, e os restantes colaboradores, por outro, existem diferenças significativas de tratamento ao nível de incompatibilidades e impedimentos, que são dificilmente compreensíveis. A lei-quadro das entidades reguladoras determina que as incompatibilidades e impedimentos em causa apenas se aplicam aos titulares dos órgãos das entidades reguladoras que venham a ser designados ao abrigo da lei-quadro. Quer dizer, estes constrangimentos não são imediatamente aplicáveis aos mandatos em curso dos membros do conselho da AdC. Porém, no caso dos trabalhadores e titulares de cargos de direção ou equiparados, a mesma lei-quadro impõe que, verificando-se uma incompatibilidade ou um impedimento em resultado das alterações introduzidas nesta matéria, este grupo de colaboradores terá de pôr termo a essas situações, no prazo de 6 meses, ou fazer cessar os respetivos vínculos.
Paralelamente, no período após a cessação de funções, a proibição de estabelecer vínculos ou relações contratuais com empresas que tenham tido intervenções em processos ou sido destinatárias de atos, decisões ou deliberações da AdC passa a ser também extensível aos titulares de cargos de direção ou equiparados (ao contrário dos estatutos anteriores, em que este impedimento valia apenas para os membros do conselho). Para os membros do conselho ainda se prevê uma compensação, durante a moratória de 2 anos, equivalente a 50% do vencimento mensal anterior, mas os titulares de cargos de direção ou equiparados não beneficiam de igual prerrogativa. Esta solução é, a nosso ver, injustificada e suscetível de constituir um desincentivo à captação de quadros qualificados e experientes para funções de direção.
Ainda assim, os estatutos da AdC acabaram por não refletir a penalidade que a lei-quadro das entidades reguladoras prevê para os casos de violação desta proibição por parte dos titulares de cargos de direção ou equiparados, que seria a obrigação de restituírem todas as remunerações líquidas auferidas no desempenho do cargo anterior, até um máximo de 3 anos. Já no caso dos membros do conselho, os estatutos contemplam uma pesadíssima sanção em caso de incumprimento da referida proibição, que consiste na obrigação de se devolver o montante equivalente a todas as remunerações líquidas auferidas durante o período em que exerceram funções.
Uma vez mais, e reportando-nos apenas à AdC (entidade com jurisdição sobre todas as empresas que desenvolvam uma atividade económica com algum grau de conexão com o território português), a solução acolhida parece ser desajustada face aos padrões de qualidade e profissionalismo que se pretende atrair para a composição dos respetivos quadros de topo.
Recurso extraordinário em matéria de concentrações
À semelhança do que ocorria nos anteriores estatutos, o Decreto-Lei n.º 125/2014 manteve, como resquício histórico, a possibilidade de o Governo autorizar uma concentração proibida pela AdC, dentro de alguns condicionalismos. Trata-se aqui de um expediente excecional, inspirado no regime alemão de controlo de concentrações, que apenas foi utilizado uma vez entre nós face a decisões da AdC, quando, em 2006, o então Ministro da Economia aprovou a aquisição da Auto-Estradas do Oeste e da Auto-Estradas do Atlântico pela Brisa.
A norma dos atuais estatutos que rege este recurso extraordinário foi objeto de algumas alterações cirúrgicas, que se destinam a reforçar o caráter atípico da medida. Assim, resulta hoje mais claro do texto da lei que a decisão de reversão só pode ser tomada «excecionalmente». O fundamento da reversão da decisão de oposição continua a ser a existência de benefícios resultantes da concentração para a prossecução de interesses fundamentais da economia nacional, que superem as desvantagens concorrenciais resultantes da sua implementação. O acrescento da exigência (algo tautológica) de que esses interesses, para além de fundamentais, sejam também «estratégicos» só poderá servir o propósito útil de “apertar” o crivo de aprovação deste tipo de operações.
Do ponto de vista procedimental, a decisão de autorização extraordinária compete agora ao Conselho de Ministros, mediante proposta do Ministro da Economia, quando anteriormente era competência exclusiva deste. Na anterior formulação dos estatutos, a decisão de autorização podia, ou não, ser acompanhada de condições e obrigações tendentes a minorar o impacto negativo da operação sobre a concorrência. À luz da nova versão, parece que a imposição dessas condições e obrigações será obrigatória, o mesmo valendo quanto à exigência de publicação integral da decisão em Diário da República.
Transparência de atuação
Uma nota final para assinalar que os novos estatutos deram ainda passos importantes no sentido de intensificar o esforço de transparência na atividade da AdC, aspeto fundamental para a difusão e consolidação de uma cultura de concorrência, compliance e segurança jurídica.
Por exemplo, passou a ter força de lei a best practice de, antes da aprovação ou alteração de qualquer regulamento que tenha eficácia externa, a AdC realizar uma consulta pública, em regra, por período não inferior a 30 dias. Na mesma linha, a página eletrónica da AdC terá de disponibilizar, de forma contínua e atualizada, um conjunto alargado de elementos legislativos, regulamentares e administrativos, bem como decisões administrativas e judiciais, que são essenciais para uma correta apreensão das “regras do jogo”.