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22.01.2019

Ceci N'est Pas Une Concentration: o Acórdão Austria Asphalt do TJUE

Caso duas empresas decidam criar uma empresa-comum, controlada por ambas, uma tal operação apenas deverá ser notificada à Comissão Europeia (“Comissão”) se a empresa-comum desempenhar de forma duradoura todas as funções de uma entidade económica autónoma, ou seja, é necessário que a mesma tenha uma presença autónoma no mercado (critério do “pleno exercício”). E o que acontece no caso de uma alteração da natureza do controlo exercido sobre uma empresa existente, que, sendo anteriormente exclusivo, se torna conjunto? É também necessário que a nova empresa-comum (antes apenas uma subsidiária controlada exclusivamente por uma das sociedades-mãe) desempenhe de forma duradoura todas as funções de uma entidade económica autónoma? Foi a esta questão que o TJUE respondeu no acórdão Austria Asphalt1.

A Austria Asphalt, sociedade do Grupo Strabag, pretendia adquirir 50% do capital de uma sociedade totalmente detida (e, por isso, exclusivamente controlada) pela Teerag Asdag, sociedade do Grupo Porr. Em consequência da transação, a Austria Asphalt e a Teerag Asdag passariam a exercer controlo conjunto sobre a empresa-alvo (através da criação de uma sociedade-veículo, que incorporaria essa participação). Uma vez que a maior parte da produção da empresa-alvo seria destinada às suas sociedades-mãe, a nova empresa-comum não teria uma presença autónoma no mercado.

A operação foi notificada à Autoridade Federal para a Concorrência, tendo a mesma sido posteriormente enviada ao Tribunal da Concorrência Austríaco, que considerou que a transação notificada constituía uma concentração de dimensão europeia (na aceção do artigo 3.°, n.º 1, alínea b), do Regulamento n.º 139/2004) e que, por isso, a mesma não podia ser examinada à luz do direito austríaco (cf. artigo 21.º, n.º 2, do Regulamento n.º 139/2004). Por seu lado, a Austria Asphalt defendeu que numa aquisição de controlo conjunto sobre uma empresa já existente se deveria verificar igualmente o critério do “pleno exercício”, pelo que a operação não seria notificável à Comissão. O Supremo Tribunal Austríaco reenviou a questão para o TJUE.

O TJUE começou por reconhecer que letra do artigo 3.° do Regulamento n.º 139/2004 não permite, por si só, responder a esta questão. Importa, por isso, interpretar o Regulamento com base quer na sua finalidade, quer na sua economia geral (§§ 18-20).

Ora, segundo o TJUE, o «[r]egulamento deverá [...] aplicar-se às modificações estruturais importantes cujos efeitos no mercado se projetem para além das fronteiras nacionais de um Estado-Membro.» (§ 21). A mesma ideia é referida no Considerando 20 do Regulamento n.° 139/2004.

Citando as Conclusões da Advogada-Geral Kokott, o TJUE reconheceu que o Regulamento n.° 139/2004, não faz qualquer distinção expressa, para estes efeitos, entre a criação de uma empresa-comum através da constituição de uma nova sociedade e a aquisição de controlo conjunto sobre uma sociedade já existente (§ 23). Esta falta de distinção justifica-se, segundo o TJUE, pelo facto de que, «[s]e a criação de uma empresa comum deve ser controlada pela Comissão atendendo aos seus efeitos sobre a estrutura do mercado, a verificação de tais efeitos depende do surgimento efetivo dessa empresa comum no mercado.» (§ 24).

Posição divergente teve a Comissão no processo2: segundo esta instituição, o requisito do ‘pleno exercício’ apenas é exigido no caso da criação de uma nova empresa (-comum). Assim, a simples conversão de uma empresa já existente numa empresa-comum controlada conjuntamente por duas sociedades constitui uma operação notificável à Comissão (se cumprir os limiares de volume de negócios do Regulamento), sendo irrelevante que, por exemplo, a maior parte das vendas dessas empresa-alvo seja ou não feita às respetivas sociedades-mãe. Era já esta, aliás, a orientação dada nos §§ 91-92 da Comunicação consolidada da Comissão em matéria de competência.

Na sua decisão, o TJUE deixa claro que apenas concentrações com verdadeiro impacto na estrutura do mercado são abrangidas pelo Regulamento n.° 139/2004, isto é, concentrações que deem origem a entidades com presença autónoma no mercado. Tal não significa, como lembraram o TJUE e a Advogada-Geral, que concentrações cuja empresa-alvo não seja de pleno exercício estejam fora do escrutínio das Autoridades da Concorrência – os artigos 101.° e 102.° do TFUE são sempre aplicáveis a essas empresas-comuns (cooperativas).

Trata-se de uma decisão importante, uma vez que clarifica um relevante aspeto jurisdicional do Regime Europeu de Controlo de Concentrações.

No entanto, ao afirmar que o controlo preventivo previsto pelo Regulamento n.° 139/2004, apenas se aplica a operações que são suscetíveis de afetar a estrutura do mercado – tal acontecendo, no caso da criação de uma empresa-comum, somente quando a empresa-alvo desempenha de forma duradoura todas as funções de uma entidade económica autónoma – admitimos que se venha a questionar futura¬mente se, por razões de consistência, esse critério também não se poderia aplicar igualmente a aquisições de controlo exclusivo. Afinal, caso a empresa alvo desse tipo de aquisição de controlo não desempenhe de forma duradoura todas as funções de uma entidade económica autónoma, haverá uma verdadeira alteração da estrutura do mercado? 

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1 Acórdão de 7 de setembro de 2017, Austria Asphalt GmbH & Co. OG v. Bundeskartellanwalt, C-248/16, EU:C:2017:643, acedido e disponível em curia.europa.eu.

2 Vd. a explicação da posição oficial da Comissão nas Conclusões da Advogada-Geral Juliane Kokott, apresentadas em 27 de abril de 2017. Os serviços da Direcção-Geral da Concorrência apresentaram uma resposta divergente da posição oficial da Comissão Europeia no processo (concordando com o TJUE), levando a Advogada-Geral a criticar a falta de uma posição comum da Comissão, especialmente num tema tão importante como o da sua competência.