Comissão Europeia (“Comissão”) anunciou, no passado dia 16 de março, a criação de um novo mecanismo que permite, a qualquer cidadão, denunciar anonimamente violações às regras de concorrência.
Este novo instrumento surge na sequência do sucesso do programa de clemência, responsável pela deteção da maior parte dos cartéis sancionados nos últimos anos, e permite às empresas comunicar o seu próprio envolvimento num cartel, em troca de uma redução (ou dispensa) da coima que lhes será aplicada.
Segundo a Comissão, este novo mecanismo de denúncia anónima visa complementar o programa de clemência, dando «oportunidade aos cidadãos que tenham conhecimento da existência ou do funcionamento de um cartel ou de outros tipos de infrações às regras no domínio anti-trust para ajudarem a pôr termo a tais práticas».
Trata-se, assim, de instrumentos com diferentes destinatários e âmbitos: enquanto o programa de clemência visa permitir que empresas envolvidas num cartel denunciem essa atividade (própria) à Comissão, o sistema de denúncia encontra-se aberto a qualquer cidadão1, quer este se encontre envolvido, ou não, numa infração ao direito da concorrência, e não se encontra limitado à participação de cartéis, mas a qualquer restrição às normas de concorrência.
Caso pretenda fazer uma denúncia, um cidadão terá primeiramente de decidir se:
- Revela a sua identidade, podendo utilizar o endereço de e-mail ou número de telefone indicados no site da Comissão; ou
- Não revela a sua identidade, devendo utilizar o sistema de comunicação encriptado disponibilizado pela Comissão, que permite enviar mensagens anónimas, mas também obter respostas da Comissão através do mesmo sistema.
Se o denunciante for um representante de uma empresa envolvida num cartel, a Comissão salienta que o programa de clemência se encontra sempre disponível, podendo a empresa evitar ou reduzir a coima por essa infração e beneficiar da proteção específica concedida a um requerente de clemência.
Embora a Comissão afirme o seu empenho na proteção da identidade do denunciante, não se esclarece, contudo, que nível de proteção terá um denunciante anónimo, caso a identidade seja, por qualquer motivo (por exemplo, falha técnica do sistema, ataque informático, etc.) revelada. Não existe, no plano europeu, legislação específica nesta área, pelo que se aplicarão as diferentes legislações nacionais (que preveem níveis de proteção muito diferenciados). Note-se ainda que, se o denunciante for representante legal ou diretor de uma empresa e decida comunicar o envolvimento da sua empresa num cartel à revelia da mesma, este poderá não ter qualquer proteção em ulteriores processos contraordenacionais ou criminais, promovidos por autoridades da concorrência nacionais, às práticas denunciadas por aquele denunciante e entretanto tornadas públicas por uma decisão da Comissão. Neste caso, um denunciante anónimo terá, em princípio, uma proteção significativamente mais reduzida do que um representante legal ou diretor que denuncie um cartel no âmbito de um programa de clemência.
Por outro lado, embora esta iniciativa deva ser saudada, na medida em que aumenta as possibilidades de deteção de comportamentos anticoncorrenciais pela Comissão, a falta de concretização (ou de limitação) do leque de práticas restritivas da concorrência suscetíveis de serem denunciadas poderá dificultar a gestão do sistema pela Comissão, na eventualidade de o número de denúncias não relevantes ser elevado.
Alguns Estados-Membros instituíram, nos últimos anos, um sistema de denúncia anónima sem, contudo, apresentarem o mesmo grau de sucesso dos programas de clemência. No Reino Unido, o Office of Fair Trading (OFT)2 criou um sistema de denúncia premiada, oferecendo aos denunciantes uma quantia de até 100 000 GPB, dependente do sucesso do caso e das informações fornecidas. A Competition and Markets Authority decidiu continuar este programa, mas não se encontram disponíveis informações sobre a sua eficácia, número de denúncias (relevantes) ou eventuais pagamentos de prémios a denunciantes. A Hungria criou igualmente um sistema semelhante, bem como a Dinamarca e a Espanha, tendo o mesmo, nestes dois últimos países, apresentado resultados positivos3.
Na Alemanha, o Bundeskartellamt disponibiliza também um mecanismo de denúncia anónima, não oferecendo qualquer prémio monetário. O sistema de denúncia alemão encontra-se, contudo, limitado a cartéis, tendo portanto um âmbito mais limitado do que o sistema europeu.
Por fim, a criação destes sistemas de denúncia pelas Autoridades da Concorrência reforça a importância da implementação de programas de compliance abrangentes e eficazes pelas empresas, que prevejam mecanismos de denúncia interna de práticas anticoncorrenciais, tais como uma linha de reporte anónima ou um provedor especializado, de modo a permitir a correção (e discussão) prévia de eventuais comportamentos restritivos da concorrência.
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1 Embora a comunicação da Comissão se refira apenas a “cidadãos”, não se encontra formalmente excluída a hipótese de empresas (através dos seus representantes legais) utilizarem este meio para fazerem chegar à Comissão as suas denúncias de violações às regras da concorrência.
2 Esta autoridade foi extinta, tendo as suas competências sido transferidas para a Competition and Markets Authority, que manteve o sistema de denúncia anónima.
3 Segundo a Autoridade da Concorrência dinamarquesa, cerca de 10% das denúncias resulta numa investigação. A Autoridade da Concorrência espanhola informou que, desde 2008, 94 casos foram abertos na sequência de informações prestadas através do sistema de denúncia anónima.