Introdução
Em março de 2017, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJ” ou “Tribunal”) adotou dois acórdãos de elevado valor jurídico e simbólico, nos casos Samira Achbita e Asma Bougnaoui1. Tratou-se da primeira vez que o Tribunal se pronunciou sobre a possibilidade de restringir a utilização de símbolos religiosos no local de trabalho. Em concreto, estava em causa a questão de saber se um empregador pode limitar o uso de um lenço islâmico por parte de uma trabalhadora de confissão muçulmana.
A relevância deste tema extravasa, em muito, o travejamento legal das duas decisões e os ecos internacionais – tanto de apoio, como de crítica – fizeram sentir-se um pouco por todo o mundo. Arriscamos, aliás, dizer que por vezes a ânsia mediática de comentar estas sentenças acabou por precipitar o sentido das orientações delas extraídas. Parece-nos, pois, que um comentário aos acórdãos em questão – para mais jurídico, como este é – tem de partir de uma rigorosa delimitação dos factos e do quadro jurídico em que assentou o juízo do TJ, para só depois se formularem as pertinentes conclusões.
Os factos
Ambos os acórdãos versam sobre o despedimento de trabalhadoras por usarem lenços islâmicos em locais de trabalho privados e em funções que implicavam contacto com clientes. Os lenços islâmicos – também ditos hijab – cobrem apenas a cabeça, distinguindo-se, por exemplo, das burcas (que cobrem toda a face).
No primeiro caso acima referido, Samira Achbita trabalhou como rececionista, entre 2003 e 2006, na empresa belga G4S, que presta serviços de receção e acolhimento a clientes. Durante esse período, existia na empresa uma regra (inicialmente não escrita e posteriormente constante de um regulamento interno) por força da qual os trabalhadores não podiam usar no local de trabalho sinais visíveis das suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, nem praticar qualquer ritual decorrente de tais crenças. Uma vez que, a partir de 2006, Samira Achbita passou a usar o lenço islâmico durante o período e no local de trabalho, a empresa despediu-a por entender que tal utilização violava a regra de neutralidade em vigor.
No segundo processo, Asma Bougnaoui usava já o lenço islâmico quando, em 2008, foi contratada pela empresa informática francesa Micropole, na qualidade de engenheira de projetos. Embora pareça resultar dos autos que a empre¬sa respeitava a manifestação de credos religiosos pelos seus trabalhadores no perímetro laboral – e de, portanto, não existir aparentemente uma regra de neutralidade geral face a convicções políticas, filosóficas e religiosas – a empresa teria informado Asma Bougnaoui de que não poderia usar o lenço islâmico se tal contrariasse a vontade expressa de algum cliente com quem viesse a contactar. Foi efetivamente o que sucedeu: na sequência de queixas de um cliente – por alegado incómodo com a situação – foi pedido a Asma Bougnaoui que deixasse de envergar o lenço islâmico; tendo esta recusado, acabou por ser despedida um ano depois de iniciar funções.
Enquadramento jurídico
Os dois processos em questão resultam de reenvios operados pelos órgãos jurisdicionais nacionais que estão a julgar os casos: o Tribunal de Cassação belga, no processo Achbita, e o Tribunal de Cassação francês, no processo Bougnaoui.
Quer isto dizer que, pela natureza jurídica dos processos em causa (de reenvio prejudicial), o TJ está, à partida, limitado na sua atuação. O Tribunal apenas pode pronunciar-se sobre a interpretação (ou a validade, que neste caso não foi suscitada) do direito da União Europeia (UE ou “União”) e não sobre a interpretação das regras de direito nacional ou sobre questões de facto levantadas nos litígios principais. Por outro lado – e este aspeto é particularmente relevante quanto aos dois acórdãos em apreço –, o TJ, num reenvio prejudicial, não aplica o direito da União a esses litígios, nem os resolve. O TJ procura dar uma resposta útil para a solução do pleito nacional, mas é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe retirar as consequências concretas das orientações recebidas e decidir o caso.
Feita esta precisão, que nem sempre vimos adequadamente sopesada nos comentários públicos feitos aos dois acórdãos, não nos parece que estas decisões resultem propriamente de um julgamento do TJ sobre a essência e o alcance do direito fundamental à liberdade religiosa – que, de resto, o Tribunal reconhece de forma clara no quadro do direito da UE, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das tradições constitucionais dos Estados-Membros –, mas antes de uma ponderação de equilíbrios da sua expressão em locais de trabalho e em locais de trabalho privados e de empresas que assumiam (ainda que nem sempre de forma correta, como veremos) uma política de neutralidade em relação ao uso visível de símbolos religiosos, políticos e filosóficos ainda antes da contratação das duas trabalhadoras em causa.
Estamos, portanto, e em nosso entender, mais na esfera dos direitos laborais do que dos direitos religiosos. Aliás, na génese das questões prejudiciais colocadas pelos órgãos de reenvio estão dúvidas de interpretação que incidem sobre normas da Diretiva 2000/78/CE, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional. Em concreto, o tribunal belga pretendia saber se a proibição de uma trabalhadora muçulmana usar um lenço islâmico no local de trabalho constitui uma forma de “discriminação direta”2, sabendo-se que a regra vigente nas instalações do empregador proíbe, a todos os trabalhadores, a utilização, no local de trabalho, de sinais exteriores de convicções políticas, filosóficas ou religiosas. Por seu turno, o tribunal francês questionou o TJ sobre se o desejo de um cliente, de que as prestações de serviços informáticos deixem de ser asseguradas por uma trabalhadora que usa o lenço islâmico, pode ser considerado um “requisito profissional essencial e determinante” em razão da natureza da atividade profissional em causa ou das condições da sua execução3.
Decisão do Tribunal
Equacionadas nestes moldes as questões prejudicais – e, logo, o objeto da apreciação do Tribunal – parece-nos difícil que a resposta do TJ pudesse ter sido diferente da que foi dada aos tribunais nacionais. Refira-se, até, que o TJ “emprestou” aos casos uma formação solene e alargada, decidindo-os através da Grande Secção, tipicamente reservada para as causas de maior complexidade ou importância.
Resumidamente, a posição do Tribunal foi a seguinte:
(i) Acórdão Achbita: uma regra interna de uma empresa que proíbe o uso visível de quaisquer sinais políticos, filosóficos ou religiosos não constitui uma discriminação direta de trabalhadores que utilizem o lenço islâmico;
(ii) Acórdão Bougnaoui: na ausência de tal regra geral e abstrata, a vontade de um empregador, de ter em conta os desejos de um cliente no sentido de as prestações dos seus serviços não serem asseguradas por uma trabalhadora que usa um lenço islâmico, não pode ser considerada um requisito profissional suscetível de afastar a existência de uma discriminação.
Comentário
A solução do TJ no caso Bougnaoui não parece oferecer dúvidas. Com efeito, só em circunstâncias limitadas se deve admitir que uma característica relacionada com a religião pode constituir um “requisito profissional essencial e determinante”. Como recordou o Tribunal, este conceito remete para uma exigência objetivamente ditada pela natureza ou pelas condições de exercício de uma atividade profissional e não abrange considerações subjetivas (como a vontade do empregador de ter em conta os desejos concretos de um cliente).
Contudo, a orientação seguida no acórdão Achbita foi severamente criticada por aqueles que entendem que legitima a discriminação religiosa. A nossa opinião é a de que, nas grandes linhas e atentos os dados da equação, a resposta dada pelo TJ afigura-se acertada e equilibrada, mas o Tribunal teceu alguns obiter dicta sobre o tratamento jurídico dos factos sub iudice que não são isentos de críticas.
Em especial, embora se aceite que uma política indiferenciada de neutralidade política, filosófica e religiosa não institui uma diferença de tratamento “diretamente” baseada na religião (e daí que, a nosso ver, a resposta à questão colocada pelo tribunal francês não pudesse ser outra quanto a este ponto), parece-nos que a análise do Tribunal devia ter ido mais longe quanto à hipótese de essa política resultar numa discriminação indireta baseada na religião, o que poderá ocorrer se se demonstrar – aspeto que cabe ao tribunal nacional aferir – que a obrigação aparentemente neutra que ela contém implica, na prática, uma desvantagem específica para os trabalhadores que seguem determinadas crenças (independentemente da sua índole). É que, nos termos da Diretiva 2000/78, tal discriminação indireta só será admissível se for objetivamente justificada por um “propósito legítimo” e se os meios para a realização desse fim forem “adequados” e “necessários”.
O racional do TJ, neste particular, assenta, em primeiro lugar, na ideia de que a vontade de um empregador de dar aos seus clientes uma imagem de neutralidade é legítima, uma vez que está compreendida no âmbito da liberdade de empresa, reconhecida pela Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Julgamos, porém, que o Tribunal devia ter densificado mais esta conceção, dado que, no acórdão Bougnaoui, declinou justamente a possibilidade de os desejos dos clientes cercearem o direito dos trabalhadores manifestarem as suas convicções religiosas.
Em segundo lugar, o Tribunal considerou que a proibição do uso visível de sinais de convicções políticas, filosóficas ou religiosas é apta para garantir a boa aplicação de uma política de neutralidade, desde que essa política seja verdadeiramente conduzida de forma coerente e sistemática. Naturalmente que esta exigência deve ser verificada pelo juiz nacional, mas este aspeto parece-nos suficientemente relevante para ter merecido uma abordagem mais profunda do TJ. Na realidade, assegurar a satisfação deste critério é um exercício da maior dificuldade e delicadeza no quotidiano de uma empresa. Por exemplo, o uso de uma aliança de casamento, ou em geral de qualquer joia com simbologia religiosa, é incompatível com uma política consistente de neutralidade total? E o que dizer de uma peça de vestuário que ostente uma posição de princípio desfavorável, ainda que caricatural, quanto a certos regimes políticos (v.g., ditaduras, anarquias, etc.)?
Por fim, o Tribunal afirmou ainda que a regra de neutralidade será estritamente necessária para atingir o objetivo prosseguido se abranger unicamente os trabalhadores que se relacionam com os clientes, entendendo ainda que se deve avaliar se, em face dos condicionalismos inerentes à empresa, e sem que esta tivesse de suportar um encargo suplementar, teria sido possível propor a Samira Achbita um posto de trabalho que não implicasse contacto visual com esses clientes, ao invés de a despedir. Também aqui somos da opinião de que o TJ devia ter empreendido um exame mais vasto e robusto.
Não parece, de facto, que a sugestão de “passar” os trabalhadores que manifestem a sua fé religiosa para cargos de back-office seja desejável como medida genérica, quando o foco, mesmo da perspetiva de um empregador, deveria antes ser canalizado para a prestação de um bom serviço aos clientes. E, neste âmbito, o Tribunal podia, por exemplo, afirmar a necessidade de os órgãos jurisdicionais nacionais analisarem até que ponto a política de neutralidade é essencial para a empresa em questão proteger a sua imagem corporativa face aos seus clientes e de que modo pode essa imagem ser lesada na ausência de tal política. Por outro lado, a indicação do TJ pode facilmente ser mal percecionada pelas empresas e conduzir a práticas discriminatórias na própria contratação de certos trabalhadores para cargos de high profile.
Em síntese, caberá aos tribunais nacionais, em última instância, definir os contornos destes equilíbrios nos casos concretos que se lhes apresentem. Nos litígios que deram origem aos dois acórdãos do TJ não é, aliás, de excluir que possa mais tarde haver recurso para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que já deu mostras de ter um crivo mais exigente quanto ao balanço entre liberdade religiosa e imagem corporativa7.
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1 Acórdãos G4S Secure Solutions, processo C-157/15, EU:C:2017:203, e Bougnaoui e ADDH, processo C-188/15, EU:C:2017:204, ambos de 14 de março de 2017.
2 Ao abrigo do n.° 2 do artigo 2.° da Diretiva 2000/78, considera-se que existe “discriminação direta” sempre que, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.° (discriminação em razão da religião, das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no âmbito do emprego e da atividade profissional), uma pessoa seja objeto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável. Já “discriminação indireta” ocorre quando uma disposição, um critério ou uma prática aparentemente neutra seja suscetível de colocar numa situação de desvantagem pessoas com uma determinada religião ou convicções, com uma determinada deficiência, pessoas de uma determinada classe etária ou pessoas com uma determinada orientação sexual, comparativamente com outras pessoas, a não ser que tal disposição, critério ou prática sejam objetivamente justificados por um objetivo legítimo e que os meios utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários.
3 Nos termos do n.° 1 do artigo 4.° da Diretiva 2000/78, os Estados-Membros podem prever que uma diferença de tratamento baseada numa característica relacionada com qualquer dos motivos de discriminação referidos no artigo 1.° não constituirá discriminação sempre que, em virtude da natureza da atividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa atividade, na condição de o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.
4 Veja-se, por exemplo, o acórdão de 15 de janeiro de 2013, Eweida e outros c. Reino Unido, processos 48420/10, 59842/10, 51671/10 e 36516/10, que condenou o Reino Unido a pagar uma indemnização de 2000 EUR a uma trabalhadora do balcão de check-in da British Airways, que foi suspensa por usar um fio com uma cruz católica.