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30.12.2014

Farminveste / Pararede: primeira transação em processo de não notificação de operação de concentração

Num comunicado de imprensa de agosto de 2014, a Autoridade da Concorrência (“AdC”) anunciou a sua primeira transação num processo de contraordenação relativo à violação do dever legal de não implementação de uma concentração (“stand-still”)1. A Autoridade reduziu a coima originalmente aplicada em um terço em contrapartida pela confissão dos factos pelas arguidas e pela renúncia ao recurso judicial relativamente aos mesmos.


O processo

O caso remonta a janeiro de 2013, quando a AdC condenou a Associação Nacional de Farmácias (“ANF”) e duas empresas por si controladas numa coima de cerca de 150 mil euros pela implementação da concentração Farminveste/Pararede, operação sujeita a notificação prévia nos termos da anterior Lei da Concorrência (18/2003), sem aguardar pela aprovação da AdC.2 Esta decisão foi contudo anulada pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em setembro do mesmo ano, por considerar que a AdC havia violado o direito de defesa das arguidas, ao não ouvi-las sobre novos factos tidos em conta na decisão condenatória (para os quais aliás a AdC tinha sido alertada pelas próprias arguidas).3 Tendo o caso sido remetido à AdC para sanar o vício, esta optou por encerrá-lo através do procedimento de transação.


O procedimento de transação

Sendo o instituto da transação uma novidade introduzida em 2012 pela nova Lei da Concorrência (19/2012), não há ainda experiência significativa na sua aplicação. Por outro lado, esta decisão de transação foi adotada num processo por incumprimento da obrigação de notificação e não, como seria certamente mais habitual (tendo em conta a prática europeia) no seguimento de um processo por práticas restritivas da concorrência. É aliás, neste domínio que foi adotada em julho 2013 a primeira, e até recentemente a única, decisão de transação, relativa ao cartel da Espuma de Poliuretano.

Um fator que terá certamente contribuído para a adoção desta solução é a flexibilidade e utilidade que o instituto constitui, quer para a AdC quer para as empresas, permitindo àquela decidir os casos mais depressa e alocar os seus recursos de forma mais eficaz, ao passo que para estas, para além da óbvia vantagem que representa a redução da coima que lhes seria aplicável, lhes permite ainda uma significativa poupança de tempo e custos que seriam despendidos com um processo mais moroso.


A transação e o regime da clemência

Porém, e apesar das óbvias vantagens inerentes à transação, é importante ter em conta a possibilidade de este procedimento colidir com o chamado regime da clemência, ao abrigo do qual as empresas envolvidas em cartéis podem obter dispensa ou redução da coima que lhes seria aplicada por colaborarem com a AdC, sendo a dispensa atribuída à primeira empresa a reportar uma infração desconhecida, ou a provar a sua existência, e a redução (que pode ir até 50%) às empresas que apresentem elementos de prova de valor adicional significativo relativamente àqueles já na posse da AdC.

Embora estes instrumentos gozem de alguma complementaridade, prosseguem objetivos e têm naturezas distintas, pois a clemência visa permitir o início de uma investigação relativamente a cartéis que de outro modo permaneceriam secretos, ao passo que a transação constitui apenas uma possibilidade de obter eficiências processuais e providenciar um desfecho célere a um processo já iniciado. A lei portuguesa permite que a AdC determine livremente o desconto a aplicar em cada procedimento de transação. Contudo, e como reconhecido pela própria AdC4, a aplicação de um desconto no âmbito da transação equivalente ou superior à redução da coima que obteria uma empresa requerente de clemência poderia ter um efeito dissuasor da utilização deste instrumento, já que retiraria incentivo às empresas para recorrer à clemência, ao garantir-lhes uma redução significativa do montante da coima potencialmente aplicável, o que frustraria o objetivo de deteção de novos cartéis.

A este propósito cabe referir que no processo cartel da Espuma de Poliuretano foram concedidos descontos entre 38% e 40%, e no processo Farminveste/Pararede descontos de 33%. Esta percentagem é significativamente superior ao montante de 10% de redução fixado pela própria Comissão Europeia para os processos de transação a nível europeu, e que de acordo com a AdC pode servir como uma primeira referência, embora não possa ser encarado como um limite, pois segundo esta devem ser tidas em conta todas as circunstâncias específicas do caso concreto.


Comentário

O desafio reside pois em encontrar valores que tornem a transação viável, mas sem ir ao ponto de esvaziar de sentido o recurso à clemência, que é considerado o incentivo por excelência à cooperação das empresas com a AdC. Deste modo, é ainda difícil estabelecer uma métrica de aplicação do instrumento da transação e dos valores referência para a AdC, já que a experiência da Autoridade é ainda recente e pouco consolidada.

Porém, e como a decisão Farminveste o demonstra, a AdC pretende incentivar fortemente a utilização do procedimento de transação, independentemente da configuração do processo em questão, se tal se revelar pertinente. Pelo que, de acordo com o entendimento expresso pela própria, se antecipa como cada vez mais presente a utilização deste instrumento no futuro.

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1 Comunicado 11/2014, de 7 de agosto.
2 Ver [Newsletter de março de 2013 - hyperlink] [ http://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Newsletters_Boletins/2013/EUROPEU_ DIR_270313_PT_2P.pdf]
3 Ver artigo “Farminvest/Glintt sequel – more than it meets the eye”, publicado no International Law Office, em 23 de outubro de 2014, disponível em http://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Artigos/2014/Farminveste_Glintt_sequel___more_to_it_than_meets_the_ eye_ _International_Law_Office.pdf
4 Ver “Discurso do Presidente da Autoridade da Concorrência” no Almoço do Círculo dos Advogados Portugueses de Direito da Concorrência, a 4 de abril de 2014, disponível em http://www.concorrencia.pt/vPT/Noticias_Eventos/Intervencoes_publicas/ Documents/Discurso_CAPDC_4abril2014.pdf

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