22.01.2024
Legal Alert | Alteração ao Código Penal e ao Regime de Infrações Antieconómicas e contra a Saúde Pública - Lei n.º 4/2024, de 15 de janeiro
No passado dia 15 de janeiro, foi publicada em Diário da República a Lei n.º 4/2024, que entrará em vigor no dia 14 de fevereiro de 2024 e que serve as seguintes finalidades:
- Completar a transposição da Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil (Diretiva 2011/93/UE);
- Completar a transposição da Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017, relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da União através do direito penal (Diretiva (UE) 2017/1371);
- Ampliar o âmbito do crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, alterando o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro (Código Penal); e
- Criminalizar a utilização indevida de receitas da União Europeia, alterando o Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que prevê o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública (Decreto-Lei n.º 28/84).
A entrada em vigor da Lei n.º 4/2024 resulta, assim, na alteração do Código Penal e do Decreto-Lei n.º 28/84, visando o presente Legal Alert assinalar as principais modificações que serão introduzidas nestes dois diplomas legais.
I. Alteração ao Código Penal
As várias alterações introduzidas no Código Penal pela Lei n.º 4/2024 apresentam uma índole diversificada, sendo motivadas por intenções legislativas e de política criminal distintas.
a) Prazos de Prescrição
A nova redação do n.º 5 do artigo 118.º do Código Penal veio ampliar, em determinadas circunstâncias, o prazo de prescrição aplicável aos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menores, bem como ao crime de mutilação genital feminina praticado contra vítima menor.
Na redação anterior deste n.º 5 do artigo 118.º, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, previa-se que o procedimento criminal não se extinguiria, quanto aos crimes supramencionados, antes de o ofendido perfazer 23 anos.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 4/2024, o procedimento criminal não se extinguirá, por efeito da prescrição, antes de o ofendido perfazer 25 anos.
Paralelamente, a Lei n.º 4/2024 veio introduzir um novo n.º 5 no artigo 119.º do Código Penal, alterando o momento em que tem lugar o início da contagem dos prazos de prescrição aplicáveis aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, deixando o momento determinante de ser, em conformidade com as regras gerais de contagem dos prazos de prescrição, o da consumação do crime (cf.artigo 119.º, n.º 1, do mesmo diploma).
O novo n.º 5 do artigo 119.º do Código Penal passa a prever que, nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menor, a contagem do prazo de prescrição apenas se inicia quando o ofendido atingir a maioridade e, se morrer antes dessa data, a partir da data da sua morte.
b) Crimes de Pornografia de Menores e de Organização de Viagem para Fins de Turismo Sexual com Menores
A nova redação do n.º 3 do artigo 176.º do Código Penal, introduzida pela
Lei n.º 4/2024, vem ampliar o escopo de condutas subsumíveis no crime de pornografia de menores puníveis com a pena agravada de prisão de 1 a 8 anos.
Nos termos da anterior redação do n.º 3 do artigo 176.º do Código Penal, quem utilizasse menor em espetáculo pornográfico ou em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciasse para esses fins (artigo 176.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal), «recorrendo a violência ou a ameaça grave», seria punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 4/2024 no n.º 3 do artigo 176.º do Código Penal, a conduta descrita nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 176.º passa a ser punível com pena de prisão de 1 a 8 anos se o agente atuar com recurso a «qualquer forma de ameaça, constrangimento ou violência».
Adicionalmente, a nova redação do artigo 176.º-B do Código Penal veio ampliar as condutas subsumíveis no tipo criminal de organização de viagem para fins de turismo sexual com menores, adaptando as penas aplicáveis ao agente consoante a sua conduta seja praticada dentro ou fora do âmbito da sua atividade profissional ou com intenção lucrativa.
Na redação introduzida pela Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, praticaria o crime tipificado no artigo 176.º-B do Código Penal, quem, no contexto da sua atividade profissional ou com intenção lucrativa, organizasse, fornecesse, facilitasse ou publicitasse viagem ou deslocação, sabendo que tal viagem ou deslocação se destinaria à prática de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menor, sendo esta conduta punível com pena de prisão até 3 anos, se pena mais grave lhe não coubesse por força de outra disposição legal.
Com a nova redação do artigo 176.º-B do Código Penal, à mesma conduta será aplicável o crime de organização de viagem para fins de turismo sexual com menores, independentemente de ser praticada no contexto de atividade profissional ou com intenção lucrativa do agente, caso em que será antes punível com pena de prisão até 2 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
c) Crime de Discriminação e Incitamento ao Ódio e à Violência
As novas redações das alíneas dos n.os 1 e 2 do artigo 240.º do Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 4/2024, resultam na ampliação das condutas às quais se aplica o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
Em concreto, perante a nova redação da alínea a) do n.º 1 do artigo 240.º, quem fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda que incitem ou encorajem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género, características sexuais ou deficiência física ou psíquica, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Para além de se assinalar uma ampliação dos fatores discriminatórios considerados relevantes pela incriminação, também transposta para a nova redação das alíneas do n.º 2 do mesmo artigo – que passam a incluir, a título de exemplo, a língua e a expressão de género –, deixa de ser exigido o desenvolvimento de atividades de propaganda «organizada» e ainda o «incitamento» da discriminação, ódio ou violência, bastando que a organização fundada ou constituída ou que a atividade de propaganda desenvolvida «encorajem» a discriminação, o ódio ou a violência.
A Lei n.º 4/2024 veio ainda introduzir no artigo 240.º do Código Penal um novo n.º 3, o qual dispõe que quando os crimes previstos nos números anteriores do mesmo artigo sejam cometidos através de sistema informático, o tribunal pode ordenar a eliminação dos dados ou conteúdos informáticos em causa.
d) Crime de Branqueamento
Quanto ao crime de branqueamento, a Lei n.º 4/2024 introduziu na alínea j) do n.º 1 do artigo 368.º‑A do Código Penal novos ilícitos típicos precedentes.
Nesta alínea, em que, na versão anterior, estavam incluídos os ilícitos típicos de fraude fiscal e de fraude contra a segurança social, passam a constar, adicionalmente, os ilícitos de «contrabando», «contrabando de circulação» e de «contrabando de mercadorias de circulação condicionada em embarcações», conforme definidos no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho.
e) Conceito de Funcionário
Por fim, veio a Lei n.º 4/2024 alterar a redação do n.º 3 do artigo 386.º do Código Penal, estendendo ao crime de peculato, previsto no artigo 375.º do mesmo diploma, os efeitos da equiparação de determinados cargos e funções, elencados nas suas alíneas a) a f), ao conceito de funcionário.
O n.º 3 deste artigo 386.º do Código Penal, inicialmente introduzido pela Lei n.º 108/2001, de 28 de novembro, e sucessivamente alterado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, e pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril, dispõe que, para efeitos do disposto nos artigos 335.º (crime de tráfico de influência), 372.º (crimes de recebimento ou oferta indevidos de vantagem), 373.º (crime de corrupção passiva) e 374.º (crime de corrupção ativa) do Código Penal, são equiparados ao conceito de funcionário um conjunto de cargos e de exercícios de funções elencados nas alíneas a) a f) desse mesmo número.
Com a entrada em vigor da nova redação do n.º 3 do artigo 386.º, introduzida pela Lei n.º 4/2024, esta equiparação ao conceito de funcionário, indispensável à subsunção da conduta das pessoas mencionadas nas suas alíneas aos crimes aí referidos, passará igualmente a operar quanto ao crime de peculato, previsto e punível nos termos do artigo 375.º do Código Penal.
II. Alteração ao Decreto-Lei n.º 28/84
Quanto ao Decreto-Lei n.º 28/84, veio a Lei n.º 4/2024 aditar-lhe dois novos artigos, nos quais, de harmonia com o disposto na Diretiva (UE) 2017/1371, passam a estar previstas infrações penais e contraordenacionais respeitantes à utilização indevida de receitas da União Europeia (UE).
a) Crime de Utilização Indevida de Receitas da União Europeia
De acordo com o novo artigo 37.º-A, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28/84, a utilização de um benefício legalmente obtido, resultante de receitas da UE distintas das que sejam provenientes dos recursos próprios do imposto sobre o valor acrescentado, para fim diverso daquele a que se destina e que envolva um prejuízo ou uma vantagem de montante superior a 100 000 euros será punível com pena de prisão até 5 anos.
Esta conduta surge autonomizada, numa nova incriminação distinta do crime de desvio de subvenção ou subsídio previsto no artigo 37.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, o qual comina na aplicação de uma pena de prisão até 2 anos ou de multa não inferior a 100 dias a quem utilizar prestações obtidas a título de subvenção ou de subsídio para fins diferentes daqueles a que legalmente se destinam.
Resulta do n.º 2 do novo artigo 37.º-A do Decreto-Lei n.º 28/84 que, caso o prejuízo ou a vantagem envolvidos na utilização indevida das receitas da UE mencionadas no n.º 1 do mesmo artigo seja de montante superior a 10 000 euros e inferior 100 000 euros, a conduta será antes punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Nos termos do n.º 3 do novo artigo 37.º-A do Decreto-Lei n.º 28/84, as condutas tipificadas nos números anteriores também serão puníveis se resultarem de omissão contrária aos deveres do cargo.
Advindo esta criminalização da transposição da Diretiva (UE) 2017/1371, respeitante à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da UE, assinala-se a relevância deste novo preceito legal para efeitos de competência da Procuradoria Europeia, nos termos do artigo 4.º do Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, e do artigo 3.º, n.º 2, alínea c), parágrafo iii), daquela Diretiva.
b) Contraordenação de Utilização Indevida de Receitas da União Europeia de Menor Montante
Por último, à luz do disposto no novo artigo 72.º-A do Decreto-Lei n.º 28/84, introduzido pela Lei n.º 4/2024, sob a epígrafe “Utilização indevida de receitas da União Europeia de menor montante”, passa a prever-se uma nova contraordenação, a qual será cometida por quem proceder à utilização de um benefício legalmente obtido, mesmo que por omissão contrária aos deveres do cargo, resultante de receitas da União Europeia distintas das que sejam provenientes dos recursos próprios do imposto sobre o valor acrescentado, para fim diferente daquele a que se destina e que envolva um prejuízo ou uma vantagem de montante inferior a 10 000 euros.
A contraordenação aí prevista será punível com coima entre 5000 euros e 20 000 euros.