O Bundeskartellamt concluiu que a contratação de quase todos os colaboradores da Inflection AI pela Microsoft, juntamente com acordos de licenciamento, constitui uma “concentração” nos termos do direito alemão da concorrência, embora não sujeita a controlo devido aos limiares de notificação. Este caso reflete os desafios de transações digitais, como a contratação de equipas estratégicas, que pode influenciar a concorrência e estar sujeita a controlo de concentrações, levantando questões sobre a vontade dos colaboradores e a distinção entre estratégias de exclusão (“killer acquisitions”) e aquisições de talento (“acqui-hires”).
O Bundeskartellamt (autoridade da concorrência alemã, BKartA) comunicou em 29 de novembro de 2024 o resultado da sua investigação relativa à contratação de colaboradores da Inflection AI, Inc. (Inflection) pela Microsoft Corporation (Microsoft).
O BKartA concluiu que a contratação da quase totalidade dos colaboradores da Inflection pela Microsoft, a par da celebração de acordos de licenciamento permitindo à segunda o acesso a direitos de propriedade intelectual da primeira, configurava uma “concentração” na aceção do sistema de controlo de concentrações alemão. A “concentração” apenas não estaria sujeita ao referido controlo, por não se encontrarem preenchidos os limiares de notificação previstos na lei nacional.
O caso Microsoft/Inflection, que suscitou já análises concordantes da Comissão Europeia (Comissão) e da autoridade da concorrência britânica (Competition & Markets Authority, CMA), demonstra os desafios de novas realidades de M&A no setor digital. Entre esses desafios está a contratação de colaboradores altamente qualificados e estratégicos de uma empresa-alvo, e a circunstância de tal operação poder ficar sujeita ao controlo de concentrações quando estejam em causa colaboradores centrais para o desenvolvimento de uma atividade no mercado relevante.
As empresas devem, pois, avaliar se as contratações de colaboradores de outras empresas se enquadram em precedentes recentes, e se poderão estar preenchidos os limiares de notificação dos regimes de controlo de concentrações aplicáveis. Se assim for, tais contratações poderão ter de aguardar pela aprovação das autoridades de concorrência competentes, sob pena de violação das obrigações de notificação e de suspensão, associadas à eventual condenação no pagamento de coimas muito elevadas (em princípio, até 10% do volume de negócios consolidado anual global do grupo a que a empresa adquirente pertença).
A transação Microsoft/Inflection
A Microsoft é uma empresa tecnológica que atua a nível global, inclusive no setor da Inteligência Artificial (IA), onde conta, aliás, com uma parceria com a OpenAI. A Inflection, por seu turno, desenvolve modelos de IA generativa, estando também ativa no desenvolvimento e comercialização de chatbots e outras ferramentas de conversação para consumidores a nível mundial.
Em março de 2024, a Microsoft anunciou a contratação de vários colaboradores da Inflection, incluindo dois dos seus cofundadores. Além da contratação deste conjunto de colaboradores com um know-how significativo, a Microsoft celebrou ainda uma série de acordos paralelos, respeitantes a direitos de propriedade intelectual da Inflection.
Atenta a noção material e funcional de empresa para o direito da concorrência, o BKartA concluiu que a transferência dos “ativos” necessários para a aquisição da capacidade de desenvolvimento de uma atividade poderá ser abrangida pela noção de “concentração”.
A abordagem das autoridades europeias da concorrência
As conclusões do BKartA de novembro de 2024 estão alinhadas com a decisão da CMA de 4 de setembro de 2024, também no sentido de que a noção de empresa poderá corresponder a um grupo de colaboradores e respetivo saber-fazer, quando assim se possibilite a prossecução de uma determinada atividade comercial. Tal poderá ocorrer com frequência nos mercados digitais, por força da importância do know-how e da especialização no setor da IA, em particular, no desenvolvimento de modelos de IA de finalidade geral e no fornecimento de aplicações de IA como chatbots.
Anteriormente, também a Comissão havia concluído que a transação Microsoft/Inflection é abrangida pela noção de concentração para efeitos do Regulamento Concentrações Comunitárias (RCC). No entanto, tendo em conta o não preenchimento dos limiares de notificação aí previstos, a Comissão convidou os Estados-Membros a apresentarem um pedido de remessa, nos termos e para os efeitos do artigo 22.º do RCC, pedido este a que sete Estados-Membros aderiram. Na sequência, porém, do acórdão do Tribunal de Justiça de 3 de setembro de 2024, no processo Illumina/Comissão1, os Estados-Membros optaram por retirar os pedidos de remessa, obstando a uma análise aprofundada.
Concorrência e mercados laborais: um enlace cada vez mais forte, também no controlo de concentrações
Sendo a força laboral altamente qualificada um dos inputs essenciais em diferentes mercados digitais, a contratação de colaboradores estratégicos, com know-how e experiência relevantes, torna-se determinante para a concorrência no mercado.
A importância da concorrência, também nos mercados laborais, e o recente enfoque em práticas restritivas da concorrência que dificultam a mobilidade laboral e restringem a concorrência entre empresas como empregadoras – isto é, como adquirentes de trabalho – caminha no sentido de permitir que alguns comportamentos e transações sejam abrangidos tanto pela proibição de práticas restritivas da concorrência, como pelo controlo de concentrações.
Entre os novos desafios à aplicação do regime do controlo de concentrações estão as estratégias de recrutamento de equipas inteiras ou de colaboradores estratégicos de empresas nascentes ou potencialmente disruptivas, via de regra por gigantes tecnológicas, que poderão, desde logo, ser eventualmente associadas a um abuso de posição dominante ou a um ato de concorrência desleal. Em particular, e à luz de desenvolvimentos recentes, vem-se entendendo que determinadas transações deste tipo poderão assentar numa estratégia de exclusão de empresas nascentes no mercado, caso se comprove um objetivo de eliminação do produto ou serviço (potencialmente) concorrente (killer acquisitions).
Em qualquer caso, e em face do processo ora em apreço, tais transações poderão, também, configurar uma concentração. Neste caso, a mudança de controlo de facto da empresa emergente (empresa adquirida, por via da contratação de colaboradores chave) para a empresa contratante (adquirente) permite sujeitar a transação ao regime do controlo de concentrações, nacional e/ou europeu.
Importância para a aplicação futura do regime europeu de concentrações
As conclusões da Comissão, da CMA e, agora, do BKartA, no caso Microsoft/Inflection, suscitam questões e dúvidas pertinentes para a compreensão do alcance do regime do controlo de concentrações, entre as quais os termos em que a contratação de colaboradores poderá configurar uma “concentração”.
Do caso em apreço e de outros desenvolvimentos recentes no direito da concorrência, parece resultar a necessidade de balizar a contratação relevante para efeitos da subsunção a uma concentração, (i) aos colaboradores estratégicos e verdadeiramente determinantes para o desenvolvimento de uma atividade nos mercados relevantes do alvo, e/ou (ii) à contratação da (quase) totalidade das equipas de uma outra empresa. No caso da Microsoft, a conjugação da contratação com a celebração de acordos paralelos em matéria de propriedade intelectual que permitirão às equipas continuar o desenvolvimento dos produtos, parece ser um fator-chave não negligenciável.
Para o futuro, ficam dúvidas que se prendem, desde logo, com o papel da liberdade de profissão e à vontade dos colaboradores abrangidos. Com efeito, concluindo-se no sentido da sujeição de uma contratação ao controlo de concentrações, qual o impacto da vontade dos colaboradores em ser contratados pela adquirente? Ficará a sua contratação dependente de uma decisão de aprovação pela autoridade da concorrência competente?
Acrescem outras dúvidas, não menos despiciendas, como aquela referente à diferenciação entre killer-acquisitions e acqui-hires, a par da discussão em torno de uma eventual reforma dos regimes nacionais e europeu do controlo de concentrações, por forma a assegurar que este tipo de transações fique abrangido.
A este propósito, além do modelo germano-austríaco, assente na consagração do valor da transação como limiar de notificação, outros Estados-Membros vêm introduzindo call-in powers que permitem às autoridades nacionais da concorrência, sob determinadas condições, examinar uma concentração ex post. As dúvidas e reservas ainda existentes justificam um acompanhamento próximo da prática decisória.