O Regulamento n.º 2024/3011 estabelece normas para a transmissão de processos penais entre Estados-Membros da União Europeia, visando uma administração de justiça mais eficiente no espaço comum de liberdade, segurança e justiça. O regime define critérios para a transferência de processos, como a nacionalidade ou residência dos suspeitos, a localização dos factos ou das provas, e assegura direitos aos arguidos e vítimas, incluindo a possibilidade de recurso contra decisões de transmissão. Também prevê motivos de recusa obrigatórios e facultativos, além de normas sobre a validade de atos e provas transferidos. Um sistema informático descentralizado será implementado para facilitar a comunicação entre Estados.
No passado dia 18 de dezembro, foi publicado o Regulamento n.º 2024/30111, relativo à Transmissão de Processos Penais. O presente Legal Alert pretende destacar as principais normas introduzidas por este importante ato normativo da União Europeia.
1. Objeto, Âmbito de Aplicação e Definições
O Regulamento n.º 2024/3011 estabelece regras relativas à transmissão de processos penais entre os Estados-Membros com vista a melhorar a eficiência e a boa administração da justiça no espaço comum de liberdade, segurança e justiça. O seu âmbito de aplicação estende-se a todos os casos de transmissão de processos penais que corram termos nos Estados-Membros da União.
Para efeitos do Regulamento, entende-se por:
- Estado requerente, o Estado-Membro onde corre um processo penal e no qual é emitido o pedido de transmissão desse processo para outro Estado-Membro, ou que tenha iniciado ou recebido um pedido de consulta relativo a uma eventual transmissão de processo penal;
- Estado requerido, o Estado-Membro para o qual é enviado o pedido de transmissão de um processo penal para efeitos de avocação desse processo, ou que tenha recebido um pedido de consulta ou iniciado consultas a respeito de uma eventual transmissão de processo penal;
- Autoridade requerente, um juiz, tribunal, juiz de instrução ou procurador no Estado requerente competente para o processo em causa, ou qualquer outra autoridade competente designada nessa qualidade pelo Estado requerente e que, no caso em apreço, atue enquanto autoridade de investigação num processo penal com competência para solicitar a transmissão do processo penal nos termos do disposto no direito nacional;
- Autoridade requerida, um juiz, um tribunal, um juiz de instrução ou um magistrado do Ministério Público competente para decidir da aceitação ou recusa da transmissão de um processo penal, entre outras competências;
- Sistema informático descentralizado, um sistema informático descentralizado na aceção do Regulamento (UE) 2023/28442;
- Vítima, uma vítima na aceção da Diretiva 2012/29/UE3, ou uma pessoa coletiva, tal como definida no direito nacional, que sofreu danos ou prejuízos económicos em resultado direto de uma infração penal que é objeto de um processo penal ao qual se aplica o presente regulamento.
2. A Transmissão de Processos Penais
a) Critérios para requerer a transmissão do processo penal
O processo de transmissão inicia-se com um pedido por parte da autoridade requerente. Nos termos do artigo 5.º do Regulamento, só pode ser emitido um pedido de transmissão de um processo penal se a autoridade requerente considerar que a tramitação do processo em causa noutro Estado-Membro serve melhor o objetivo de uma eficiente e boa administração da justiça. São ainda estabelecidos neste artigo os critérios que a autoridade requerente deverá ter em conta para pedir a transmissão de um processo:
- O facto de a infração penal ter sido cometida, no todo ou em parte, no território do Estado requerido, ou a maior parte dos efeitos da infração ou uma parte substancial dos danos que façam parte dos sues elementos constitutivos ter ocorrido no território do Estado requerido;
- O facto de um ou mais suspeitos ou arguidos serem nacionais do Estado requerido ou nele residirem;
- O facto de um ou mais suspeitos ou arguidos se encontrarem no Estado requerido e esse Estado recusar entregar essas pessoas ao Estado requerente, com base na Decisão-Quadro 2002/584/JAI4;
- O facto de um ou mais suspeitos ou arguidos objeto de um mandado de detenção europeu se encontrarem no Estado requerido e este recusar entregar essas pessoas, se verificar que, em situações excecionais, há motivos sérios para crer, com base em elementos concretos e objetivos, que a entrega implicaria, nas circunstâncias específicas do caso, uma violação manifesta de um direito fundamental pertinente consagrado no Tratado da União Europeia e na Carta dos Direitos Fundamentais;
- O facto de a maioria dos elementos de prova pertinentes para a investigação se encontrar no Estado requerido ou a maioria das testemunhas em causa residir no Estado requerido;
- O facto de estarem a ser tramitados processos penais no Estado requerido relativos aos mesmos factos, a parte dos mesmos factos ou a outros factos contra o suspeito ou arguido;
- O facto de estarem a ser tramitados processos penais no Estado requerido relativos aos mesmos factos, a parte dos mesmos factos ou a factos conexos contra outras pessoas;
- O facto de um ou mais suspeitos ou arguidos estarem a cumprir ou forem cumprir uma pena privativa de liberdade no Estado requerido;
- O facto de a execução da sentença no Estado requerido poder oferecer melhores perspetivas de reinserção social da pessoa condenada ou existirem outros motivos pelos quais a execução da sentença no Estado requerido seja mais adequada;
- O facto de uma ou mais vítimas serem nacionais do Estado requerido ou nele residirem;
- O facto de as autoridades competentes dos Estados-Membros terem chegado a um consenso nos termos da Decisão-Quadro 2009/948/JAI5, ou de outro modo, quanto à concentração de processos penais num único Estado-Membro.
A transmissão do processo penal pode ser proposta por qualquer suspeito, arguido ou vítima, nos termos deste Regulamento. No entanto, essa proposta não cria uma obrigação para o Estado de pedir a transmissão ou de transmitir o processo, nem para que autoridades requerente e requerida se consultem entre si.
b) Direitos dos arguidos e das vítimas
No seu artigo 6.º, o Regulamento estabelece os direitos dos suspeitos ou arguidos no âmbito deste procedimento. Assim, antes da emissão do pedido de transmissão de um processo penal, a autoridade requerente deve ter em conta, de acordo com o direito nacional aplicável, os legítimos interesses do suspeito ou arguido.
A partir do momento em que é informado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro de que é suspeito ou acusado de ter cometido uma infração penal, salvo exceções, o suspeito ou arguido tem direito a ser informado da intenção de emitir um pedido de transmissão e a pronunciar-se sobre este. Caso este pedido venha efetivamente a ser emitido, o suspeito ou arguido tem direito a ser informado dos seus desenvolvimentos.
De acordo com o artigo 15.º do Regulamento, se a autoridade requerida tiver tomado uma decisão de aceitar a transmissão do processo penal, deve, salvo exceções, sem demora injustificada e numa língua que o suspeito ou arguido entenda, informá-lo dessa decisão e facultar-lhe uma cópia com a respetiva fundamentação. Deve ainda informá-lo do seu direito a um remédio efetivo relativamente a tal decisão. No mesmo sentido, caso a decisão seja de recusa da transmissão do processo penal, a autoridade requerente informa o suspeito e o arguido, nos mesmos termos.
Por sua vez, no artigo 7.º, o Regulamento estabelece os direitos da vítima. Assim, antes da emissão do pedido de transmissão, a autoridade requerente deve ter em conta, de acordo com o direito nacional aplicável, os legítimos interesses da vítima. Salvo exceções, a vítima tem igualmente direito a ser informada da intenção de se emitir um pedido de transmissão e a pronunciar-se sobre este. Caso o pedido venha efetivamente a ser emitido, a vítima tem direito a ser informada dos seus desenvolvimentos.
Por fim, nos termos do artigo 17.º, tanto os suspeitos ou arguidos como as vítimas têm o direito de recorrer da decisão de aceitação da transmissão do processo penal, direito esse a ser exercido perante um órgão jurisdicional do Estado requerido, nos termos do respetivo direito nacional. O prazo para a interposição de um recurso efetivo não pode ser superior a 15 dias a contar da data de receção da decisão fundamentada de aceitação da transmissão do processo. Se o pedido de transmissão for emitido após a conclusão da investigação criminal e a dedução da acusação contra o suspeito ou arguido, a interposição de um recurso de uma decisão de aceitação da transmissão do processo penal tem efeito suspensivo. Este efeito suspensivo não afeta a possibilidade de o Estado requerido manter as medidas provisórias necessárias para impedir o suspeito ou o arguido de fugir, ou para conservar provas, instrumentos de uma infração ou produtos do crime. A decisão final sobre o recurso é tomada sem demora injustificada e, se possível, no prazo de 60 dias. Caso a decisão sobre o recurso seja no sentido de anular a decisão de aceitar a transmissão, o processo reverte para a autoridade requerente.
c) Motivos de recusa da transmissão do processo penal
No seu artigo 12.º, o Regulamento estabelece motivos de recusa obrigatória e de recusa facultativa da transmissão do processo penal.
Assim, a autoridade requerida recusa a transmissão do processo penal, no todo ou em parte, por um ou vários dos seguintes motivos:
- A conduta relativamente à qual o pedido foi efetuado não constitui infração penal nos termos do direito nacional do Estado requerido;
- A avocação do processo penal é contrária ao princípio ne bis in idem;
- O suspeito ou arguido não pode ser responsabilizado pela infração penal devido à idade;
- O processo penal prescreveu nos termos do direito nacional do Estado requerido;
- Não estão reunidas as condições para exercer ação penal pela infração no Estado requerido;
- A infração penal está abrangida por amnistia, em conformidade com o direito nacional do Estado requerido;
- O Estado requerido não tem competência para conhecer da infração penal em conformidade com o direito nacional ou competência em virtude das normas estabelecidas no presente Regulamento.
Por sua vez, a autoridade requerida pode recusar a transmissão de processos penais, no todo ou em parte, por um ou vários dos seguintes motivos:
- O direito nacional do Estado requerido prevê um privilégio ou uma imunidade que impossibilita a ação;
- A autoridade requerida considera que a transmissão do processo penal não é do interesse da eficiente e boa administração da justiça;
- A infração penal não foi cometida, no todo ou em parte, no território do Estado requerido, a maior parte dos efeitos ou uma parte substancial dos danos que façam parte dos elementos constitutivos da infração penal não ocorreram no território desse Estado, e o suspeito ou arguido não é nacional desse Estado nem nele reside;
- O formulário de pedido estabelecido pelo Regulamento está incompleto ou manifestamente incorreto e não foi preenchido ou corrigido na sequência da exigível consulta;
- A conduta em relação à qual foi apresentado o pedido não constitui infração penal no local onde foi praticada e o Estado requerido não tem competência originária para exercer ação penal pela infração nos termos do seu direito nacional.
d) Aspetos Procedimentais
De acordo com o artigo 8.º, o pedido de transmissão é feito pela autoridade requerente com recurso a um formulário de pedido cujo modelo está anexo ao Regulamento (Anexo I).
De seguida, conforme o artigo 11.º, a autoridade requerida decide se aceita ou recusa a transmissão do processo penal, no todo ou em parte, e comunica-a sem demora injustificada à autoridade requerente. Nos termos do artigo 13.º, a autoridade requerida dispõe de um prazo máximo para tomar uma decisão, em qualquer caso, de 60 dias, prorrogável por mais 30 dias em situações excecionais e justificadas.
Nos termos do artigo 14.º, durante o procedimento, a autoridade requerente e a autoridade requerida consultam-se mutuamente, sem demora injustificada, para assegurar uma aplicação eficiente do Regulamento.
Por último, conforme o artigo 18.º, a autoridade requerente e a autoridade requerida podem ainda, em qualquer fase do procedimento de transmissão de processo penal, solicitar a assistência da Eurojust ou da Rede Judiciária Europeia, de acordo com as respetivas competências.
3. Efeitos da transmissão de processos penais
Nos termos do artigo 21.º, após a receção da decisão fundamentada de aceitação da transmissão de um processo penal, ou de decisão final sobre o recurso referido, o processo penal é suspenso ou arquivado no Estado requerente, em conformidade com o direito nacional, a menos que o resultado do recurso seja que o processo tenha de permanecer no Estado requerente ou que a autoridade requerente já tenha procedido à sua suspensão ou arquivamento. Contudo, o processo penal pode permanecer aberto no Estado requerente caso determinadas medidas de investigação o exijam, nos termos do Regulamento. Na sequência de uma decisão da autoridade requerida no sentido de aceitar a transmissão do processo penal, a autoridade requerente e a autoridade requerida cooperam, tanto quanto possível e em conformidade com o respetivo direito nacional.
De seguida, o artigo 22.º estabelece os efeitos da transmissão no Estado requerido. Assim, o processo penal transmitido rege-se pelo direito nacional do Estado requerido. Desde que não seja contrário aos princípios fundamentais do direito do Estado requerido, qualquer ato praticado para efeitos do processo penal ou da instrução levada a cabo pelas autoridades competentes do Estado requerente tem a mesma validade no Estado requerido como se tivesse sido validamente praticado pelas suas autoridades competentes. No mesmo sentido, se, tanto no Estado requerente como no Estado requerido, o processo penal só puder ser instaurado na sequência de uma queixa, a queixa apresentada no Estado requerente é igualmente válida no Estado requerido.
Por sua vez, os elementos de prova enviados pela autoridade requerente não podem ser recusados no âmbito de um processo penal no Estado requerido apenas pelo facto de terem sido recolhidos noutro Estado-Membro e podem ser utilizados em processos penais no Estado requerido, desde que a sua admissibilidade esteja em conformidade com o respetivo direito nacional, incluindo os seus princípios fundamentais do direito. A competência do tribunal da causa para avaliar livremente os elementos de prova não é afetada pelo Regulamento.
Por último, caso seja decidida uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade no Estado requerido, é deduzido desse período todo e qualquer período de privação de liberdade que tenha ocorrido no Estado requerente no âmbito do processo transmitido. A pena aplicável à infração penal é a prevista no direito nacional do Estado requerido, salvo disposição em contrário do mesmo direito. Em determinados casos, o Regulamento prevê que a pena aplicada no Estado requerido não pode ser mais severa do que a pena máxima prevista no direito nacional do Estado requerente.
Por fim, damos nota de que será implementado um sistema informático descentralizado, com vista à comunicação entre os Estados para efeitos do Regulamento, conforme o artigo 25.º.