Em dezembro de 2024, a Autoridade da Concorrência (AdC) publicou um Short Paper sobre a abertura de modelos de inteligência artificial (IA) generativa, analisando questões concorrenciais relacionadas com o acesso a modelos-base por fornecedores terceiros e o impacto desse acesso na inovação e concorrência. A AdC distingue entre modelos de acesso fechado, condicionado e aberto, reconhecendo que um maior grau de abertura pode reduzir barreiras à entrada e fomentar a inovação, mas também gerar riscos de concentração e facilitar estratégias de alavancagem. Apesar de identificar possíveis restrições associadas ao acesso, como discriminação ou recusa de acesso, o documento não avança posições assertivas nem explora exaustivamente os fatores relevantes para avaliar práticas restritivas.
Em dezembro de 2024, a Autoridade da Concorrência (AdC ou Autoridade) adotou um segundo Short Paper dedicado à inteligência artificial (IA) generativa, intitulado “A abertura de modelos de IA”. Com ele, a AdC dá continuidade à aposta na disseminação de conhecimento, atestando a sua atuação vigilante dos mercados da IA generativa1.
Neste novo Short Paper, a AdC aborda um conjunto de questões jusconcorrenciais suscitadas pelo acesso a modelos de IA a montante (modelos-base), por fornecedores terceiros a jusante (que criam modelos especializados a partir daqueles). A AdC explora, igualmente, o impacto de um maior grau de abertura na concorrência nos mercados de IA.
O Short Paper da AdC debruça-se, em particular, sobre:
(i) Os diferentes graus de abertura dos modelos de IA generativa;
(ii) A conexão entre um maior grau de abertura dos modelos de IA e o respetivo contributo para a inovação; e
(iii) As possíveis limitações resultantes de uma maior abertura de modelos de IA.
Afinal, a AdC avança um sumário das principais mensagens. Em primeiro lugar, o acesso a modelos de IA cria mais escolha e pode promover a inovação. Em segundo lugar, um level playing field nesse acesso é essencial para a concorrência em mercados de IA a jusante.
Em contrapartida, uma maior abertura poderá também estar associada a um reforço da concentração e revelar-se instrumental para a adoção de estratégias de alavancagem.
I. Os diferentes graus de abertura dos modelos de IA generativa
A propósito do acesso aos modelos de IA, definido por referência «à capacidade de utilizadores, fornecedores terceiros e investigadores interagirem e modificarem sistemas de IA», a AdC começa por afastar o mérito de uma distinção binomial – entre modelos abertos e modelos fechados.
Pelo contrário, cruzando a abertura com a dimensão e o alcance do acesso, e precisamente em razão das diferentes componentes de um modelo, associadas ao alcance variável do acesso, a AdC labora sobre uma distinção de grau, aderindo a uma classificação tripartida.
Segundo a AdC, importa distinguir:
(i) Modelos de acesso totalmente fechado (i.e., restrito ao criador);
(ii) Modelos de acesso condicionado (em regra, concedidos através de interfaces web ou API e permitindo uma personalização limitada do modelo); e
(iii) Modelos de acesso aberto, a propósito dos quais distingue entre “open weights” e “open source”, estes últimos incluindo o acesso não apenas aos parâmetros do modelo, mas, e também, à informação detalhada sobre o mesmo, incluindo dados de treino e código-fonte.
Pese embora reconheça, ainda neste capítulo, que os modelos-base abertos tendem a revelar um pior desempenho do que os modelos fechados, a AdC não desenvolve as consequências deste aspeto para a análise jusconcorrencial, limitando-se a assinalar que «é essencial garantir que os pontos de acesso a modelos de IA não são restringidos desnecessariamente». A AdC não densifica, porém, que fatores deverão nortear a avaliação da “necessidade” e, portanto, “legitimidade”, de uma eventual restrição do acesso.
II. Sobre o potencial de inovação decorrente do maior grau de abertura dos modelos de IA
No seu Short Paper, a AdC reconhece a necessidade de promover a abertura dos modelos-base, de molde a assegurar a concorrência e a inovação nos modelos especializados de IA a jusante. De outro modo, os fornecedores terceiros e outros players a jusante ver-se-iam confrontados com constrangimentos ao desenvolvimento de novas funcionalidades e ferramentas (por exemplo, através de plugins) e à adaptação e personalização dos modelos a diferentes necessidades.
Em suma, a abertura é assinalada como garante de uma diminuição das barreiras à entrada e à expansão no mercado e, portanto, de maior contestabilidade.
Em contraste, a AdC alerta, também, para o risco de um eventual reforço da concentração, decorrente do desenvolvimento de IA em torno de um modelo-base específico, beneficiando o fornecedor desse modelo com vantagens decorrentes de efeitos de rede, acesso privilegiado a talento e um eventual fenómeno de standardização.
III. As limitações resultantes de uma maior abertura dos modelos de IA
No último ponto do seu Short Paper, a AdC reconhece que «um maior grau de abertura não é, em si, um garante de concorrência». Assim, se é certo que identifica um conjunto de práticas restritivas da concorrência potencialmente associadas a estratégias de limitação da abertura (são exemplos, o abuso de posição dominante por self-preferencing, discriminação ou recusa de acesso, tying ou bundling), a AdC não deixa de admitir que a abertura poderá, também ela, ser parte de estratégias de lock-in, isto é, de bloqueio dos utilizadores, com a exigência de subscrições para o acesso a novas versões ou de alavancagem em mercados adjacentes, designadamente através da criação de serviços complementares fechados.
Neste capítulo, a AdC demonstra a sua sensibilidade para as dificuldades de monetização associadas a modelos de IA abertos, reconhecendo que o desenvolvimento destes modelos exige um investimento significativo, e admitindo mesmo que a disponibilização gratuita poderá limitar o acesso ao capital e à receita necessários para o efeito. A mesma diversidade dos inputs essenciais justifica, aliás, o reconhecimento de que o grau de abertura de um modelo não é, por si só, garantia da capacidade efetiva de atuação e inovação dos prestadores terceiros, atenta a necessidade de poder computacional e conhecimentos especializados.
Também neste ponto, e ainda que de forma puramente descritiva (sem que se possa, portanto, extrair qualquer conclusão quanto à respetiva posição a propósito da sua bondade jusconcorrencial), a AdC reconhece a existência de algumas restrições associadas ao acesso a modelos, inclusive abertos, impostas pelos fornecedores de modelos-base. São exemplos a proibição de criação de modelos concorrentes e a imposição de limitações a aplicações comerciais de larga escala.
Principais pontos a reter
O Short Paper da AdC dá continuidade à missão de advocacy da AdC, que se vem posicionando como pioneira no setor da IA generativa. Trata-se, no entanto, de um documento que não é nem vinculativo, nem indicativo de qualquer curso de ação da autoridade no domínio do acesso a modelos-base de IA. Pelo contrário, porventura em linha com o estádio de incerteza ainda associado aos mercados da IA generativa (a montante e a jusante), a AdC opta por mapear alguns dos desafios, sem avançar uma qualquer posição assertiva, nomeadamente quanto a potenciais práticas restritivas concretas.
Por força da sua natureza, o âmbito do Short Paper afigura-se limitado, sendo, também, pouco exaustivo na concretização (i) dos riscos potenciais associados aos modelos de IA, consoante a respetiva modalidade de acesso, e, bem assim, (ii) dos fatores relevantes na determinação de uma prática como restritiva da concorrência.
Em particular, apesar de listar um conjunto de comportamentos potencialmente restritivos da concorrência no mercado, associados ao acesso a modelos-base de IA, a AdC acaba por não concretizar em que medida se poderiam verificar.
Por seu turno, não obstante reconheça a existência de limitações ao acesso, no que se refere ao desenvolvimento de modelos concorrentes e a aplicações comerciais de larga escala, a AdC não deixa uma palavra sequer quanto ao enquadramento jusconcorrencial dessas restrições, o que seria pertinente para compreender até que ponto pode ir a promoção regulatória da abertura.
Finalmente, retomando o conjunto final de “keep in mind”, importa salientar que no Paper da AdC se descobrem mensagens de importância não despicienda, cuja ausência de sinalização a final poderá suportar a interpretação de uma abordagem mais cética por parte da AdC a este propósito.
Importa, porém, não ignorar essas ideias.
Em primeiro lugar, e como reconhece a AdC, o grau de abertura de um modelo não é, por si só, garantia de acesso efetivo ou de inovação, dada a necessidade de outros inputs essenciais, como poder computacional e conhecimentos especializados. A sinergia associada a esta combinação de fatores-chave não poderá deixar de ser considerada na análise contextual exigida pelo Direito da Concorrência.
Em segundo lugar, pese embora associada a vantagens do prisma da concorrência, a abertura suscita ou pode suscitar preocupações a outros níveis, como a segurança e a resiliência, ou, ainda, preocupações contendentes com o menor desempenho dos modelos abertos, dimensões que não poderão também deixar de ser apreciadas e valoradas pela AdC, mais não seja, como potenciais justificações legítimas para restrições ou condições restritivas no acesso ou no desenvolvimento a jusante.
Finalmente, apesar de a AdC não a autonomizar como questão relevante, poderia ter sido interessante aprofundar os incentivos das empresas a montante, no que se refere à abertura dos seus modelos a terceiros. Com efeito, sendo certo que essa abertura inicial poderá estar associada a uma estratégia de «abrir primeiro, fechar depois», como evidenciado pela AdC no seu Short Paper, não é esta a única motivação descortinável e potencialmente norteadora da opção do prestador a montante por um modelo fechado ou de acesso condicionado.
Uma analogia com a interpretação restritiva votada ao abuso de posição dominante por “recusa de fornecimento ou de acesso» e o rationale que lhe subjaz – a saber, a tutela dos direitos fundamentais, a preservação dos incentivos a inovar, e a garantia da própria concorrência (dinâmica) –, deverão valer também aqui.
Apesar das suas fragilidades, o Short Paper é um elemento relevante, que os atores e intervenientes nos mercados da IA generativa devem ter em conta, nomeadamente para mapear os diferentes cenários e momentos de risco jusconcorrencial, ponderando como evitá-los no desenho das soluções e relações contratuais e parcerias estabelecidas.