O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2025, de 8 de janeiro, do Supremo Tribunal de Justiça, determinou que um aval prestado em livrança em branco, sem prazo ou com prazo renovável, pode ser denunciado até ao preenchimento do título, sendo eficaz apenas para responsabilidades futuras. A denúncia depende da relação fundamental ou do acordo de preenchimento: é livre sem prazo definido, inadmissível com prazo fixo e possível em cada renovação se o prazo for renovável. A decisão reverte jurisprudência anterior, permite ao credor ajustar a relação contratual e antecipa futuros debates, considerando a boa-fé na denúncia ligada à saída de sócio.
No passado dia 8 de janeiro de 2025, foi publicado o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2025 (AUJ n.º 1/2025), do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«1 – A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título.
2 – A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.»
No AUJ n.º 1/2025, o STJ deixou bem claro que um aval prestado numa livrança em branco, com um acordo/pacto de preenchimento, não é ainda um verdadeiro aval (e, por conseguinte, não corresponde a uma obrigação cambiária), e que, por essa razão, a possibilidade de denúncia de um “aval” prestado numa livrança em branco não pode ser aprioristicamente afastada pelo seu enquadramento no âmbito do regime jurídico aplicável às obrigações cambiárias.
O que se acaba de dizer não significa, porém, que todos os avales prestados em livrança em branco sejam, automaticamente, denunciáveis, mas apenas que a possibilidade da sua denúncia passa a estar dependente do teor da relação fundamental (contrato garantido) ou do acordo/pacto de preenchimento do título cambiário (livrança ou letra). Assim:
- Nos casos em que a relação fundamental (contrato garantido) ou o acordo/pacto de preenchimento não preveja um prazo (como aconteceu no caso que foi apreciado pelo AUJ n.º 1/2025), valerá a regra geral da livre denunciabilidade até ao momento do preenchimento do título, ou seja, a possibilidade de o avalista se desvincular unilateralmente da obrigação de garantir até àquele momento;
- Nos casos em que a relação fundamental (contrato garantido) ou o acordo/pacto de preenchimento tenha prazo certo (não renovável), a denúncia não é possível; e
- Nos casos em que a relação fundamental (contrato garantido) ou o acordo/pacto de preenchimento tenha sido celebrado por tempo determinado (mas automaticamente renovável), a denúncia é possível em cada momento de renovação e até ao momento do preenchimento do título cambiário (letra ou livrança), devendo operar mediante a oposição à sua renovação por parte do avalista em branco (consubstanciando, assim, uma denúncia atípica/indireta).
Segundo o AUJ n.º 1/2025, a denúncia apenas produz efeitos em relação às responsabilidades posteriores à receção da sua comunicação. Deste modo, o avalista mantém-se obrigado a garantir as responsabilidades incorridas até à data de comunicação da denúncia.
Mais, de acordo com o AUJ aqui em análise, o credor garantido com o aval em livrança em branco pode, depois de ter recebido uma comunicação de denúncia da parte de um avalista, nos termos supra admitidos, invocar a reconfiguração da relação fundamental, por forma a refletir a perda de garantia e evitar a libertação de novas tranches pecuniárias, mediante a invocação da exceção de não cumprimento, da resolução ou até da modificação do contrato garantido por alteração das circunstâncias. Não o tendo feito, o credor garantido assume o risco da eventual redução ou perda da garantia patrimonial decorrente da denúncia/desvinculação do avalista.
O AUJ n.º 1/2025 debruçou-se ainda sobre a eventual relevância da perda da qualidade de sócio/sócio-gerente como fundamento da resolução do vínculo pré-cambiário assumido pelo avalista de uma livrança em branco, na altura em que ainda era sócio/sócio-gerente da sociedade emissora do título. Em termos muito sucintos, o STJ clarificou que o fundamento da denúncia deve ser a ausência de prazo do vínculo e não a saída da sociedade por parte do sócio/sócio-gerente “avalista prometido”. Porém, o STJ não deixou de chamar a atenção para que o facto de a denúncia ocorrer no seguimento da saída de sócio do “avalista” pode servir como confirmação de que o exercício da faculdade de denúncia foi conforme ao princípio da boa-fé (isto é, de que não houve abuso do direito de denúncia).
Para além da importância própria inerente a um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, esta decisão reveste especial importância porque vem colocar em causa jurisprudência que havia sido anteriormente fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, de 21 de janeiro (AUJ n.º 4/2013), que, num caso bastante idêntico do ponto de vista fáctico, fixou jurisprudência no sentido da inadmissibilidade da denúncia por parte do avalista em branco ou, na terminologia agora adotada pelo AUJ n.º 1/2025, por parte do “vinculado para aval”.
Por último, cumpre chamar a atenção para a circunstância de terem sido lavrados cinco votos de vencido, que na sua maioria se debruçam sobre a necessidade de a perda da qualidade de sócio/sócio-gerente dever poder constituir fundamento de resolução do vínculo pré-cambiário assumido pelo avalista em branco, circunstância que permite antever que este tema poderá, no futuro, vir a gerar alguma discussão.