No Acórdão de 3 de setembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia anulou a decisão da Comissão Europeia no caso Illumina/Grail, que envolvia a tentativa de aquisição da Grail pela Illumina. A Comissão havia considerado a operação prejudicial à concorrência, apesar de não atingir os limiares de notificação obrigatória. O Tribunal rejeitou a competência da Comissão para avaliar operações que não preenchem esses limiares, reforçando a importância da previsibilidade e segurança jurídica no controlo de concentrações. Esta decisão impacta a política da Comissão ao limitar suas competências nesse tipo de operação.
Introdução
No passado dia 3 de setembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE ou Tribunal) proferiu Acórdão no processo Illumina/Grail 1, rejeitando o entendimento da Comissão Europeia de se considerar competente para apreciar operações de concentração de empresas que não preenchem os limiares de notificação obrigatória a nível europeu ou dos Estados‑Membros.
Com esta importante decisão, o Tribunal na prática revogou a política da Comissão Europeia, anunciada em 2021, de aceitar pedidos de remessa de concentrações das autoridades nacionais de concorrência quando essas operações fossem suscetíveis de afetar significativamente a concorrência, ao abrigo do artigo 22.º do Regulamento Europeu das Concentrações2, ainda que os critérios de notificação prévia previstos na lei dos respetivos Estados‑Membros não estivessem preenchidos3.
A saga Illumina/Grail
Este processo diz respeito à tentativa de aquisição pela Illumina da Grail, uma empresa que desenvolve testes inovadores de deteção do cancro. Embora a operação não atingisse os limiares de notificação obrigatória de controlo de concentrações, nem na União Europeia, nem em nenhum Estado‑Membro, a Comissão convidou a autoridade de concorrência francesa a remeter-lhe a operação, à luz da nova interpretação do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações. Após a autoridade francesa ter apresentado o pedido de remessa, cinco outras autoridades nacionais aderiram ao pedido, e a Comissão decidiu em 19 de abril de 2021 analisar a operação.
Embora a Illumina tenha recorrido da decisão da Comissão de aceitar os pedidos de remessa, o Tribunal Geral da UE confirmou a decisão em 13 de julho de 20224 (a Illuminarecorreu deste acórdão para o Tribunal de Justiça, recurso esse que deu origem ao Acórdão sob análise).
Em setembro de 2022, após uma investigação aprofundada, a Comissão proibiu a operação, sustentando que poderia resultar na capacidade de restringir o acesso ou aumentar os preços dos testes de deteção de cancro de nova geração5. Entretanto, uma vez que a Illumina havia anunciado a implementação da aquisição da Grail, a Comissão adotou medidas provisórias para garantir que a operação não era concluída6, e inclusivamente aplicou uma coima de 432 milhões de euros à Illumina pela implementação antecipada da mesma, em violação da obrigação de suspensão (gun jumping) aplicável às concentrações sujeitas a notificação obrigatória7. A Comissão obrigou ainda a Illumina a desfazer a operação de concentração8, tendo o processo de desinvestimento sido concluído já em junho deste ano9.
O Acórdão do TJUE
No Acórdão, o Tribunal de Justiça analisa a interpretação do artigo 22.º do Regulamento das Concentrações sob vários prismas (literal, histórico, contextual e teleológico) e conclui pela falta de competência da Comissão para analisar concentrações que não estejam sujeitas a notificação obrigatória nos termos das legislações nacionais dos Estados‑Membros.
Em particular, o Tribunal de Justiça rejeitou que o artigo 22.º tenha como objetivo sanar eventuais lacunas no sistema europeu de controlo das concentrações, que assenta num princípio de repartição precisa das competências da Comissão e das autoridades nacionais, principalmente através de limiares de volume de negócios, os quais, sendo objetivos e previsíveis, não são, por definição, suscetíveis de abranger todas as operações potencialmente problemáticas.
O Tribunal considerou em especial que a interpretação sustentada pela Comissão é incompatível com alguns dos objetivos que o Regulamento das Concentrações visa prosseguir, designadamente a existência de um “balcão único”, a segurança jurídica, a eficácia e a previsibilidade, as quais devem ser garantidas às partes numa concentração.
O Tribunal sublinhou ainda, neste contexto, que os limiares de notificação obrigatória revestem um caráter essencial para as partes numa concentração. Nas palavras do Tribunal, «a determinação da competência das autoridades nacionais da concorrência por referência a critérios relacionados com os volumes de negócios constitui uma garantia de previsibilidade e de segurança jurídica para as empresas em causa, que devem poder fácil e rapidamente identificar a autoridade a que se devem dirigir e em que prazo e sob que forma, nomeadamente no que respeita à língua e ao conteúdo das informações exigidas».
O Tribunal reconheceu a importância de um controlo efetivo das concentrações com impactos significativos na concorrência. Não obstante, salientou que esse controlo não pode significar o alargamento do alcance do Regulamento das Concentrações, nomeadamente quanto às competências previstas para a Comissão e para as autoridades nacionais, pois tal colidiria com o princípio do equilíbrio institucional da União. Assim, caso os limiares de notificação atualmente previstos no Regulamento das Concentrações se revelem insuficientes para controlar certas operações suscetíveis de ter um impacto negativo sobre a concorrência, o Tribunal afirmou que compete exclusivamente ao legislador da União revê-los, ao abrigo do processo legislativo específico e simplificado previsto no artigo 1.º, n.º 5, do Regulamento. Do mesmo modo, os Estados‑Membros também poderão alterar os seus regimes nacionais para rever em baixa os limiares de notificação obrigatória se o entenderem conveniente.
Impacto na política da Comissão Europeia
No imediato, o Acórdão do TJUE anulou o Acórdão do Tribunal Geral de 13 julho de 2022 e a decisão da Comissão de 19 de abril de 2021, através da qual esta aceitou o pedido de remessa da operação Illumina/Grail e se declarou competente para apreciar a operação. Embora não se lhes seja diretamente aplicável, ao retirar a competência da Comissão, o Acórdão na prática invalidou também as decisões adotadas subsequentemente pela Comissão neste processo, como a de proibir a operação e a coima de 432 milhões de euros aplicada à Illumina.
Na sequência do Acórdão, a Comissão afirmou que irá passar a analisar somente as concentrações que lhe sejam remetidas por autoridades nacionais que sejam competentes para apreciar a operação ao abrigo da respetiva legislação nacional, o que na prática significa a revogação implícita da sua comunicação de 202110.
A Comissão notou também que continuará a estar atenta aos casos de transações que não atinjam os limiares de notificação mas que sejam suscetíveis de afetar negativamente a concorrência, assinalando que nos anos mais recentes vários Estados‑Membros (como a Itália e a Irlanda) conferem à respetiva autoridade nacional de concorrência o poder de ordenar a notificação de operações que fiquem abaixo dos limiares de notificação nacional (“call in powers”), quando tais operações possam produzir um impacto significativo sobre a concorrência.
As autoridades nacionais poderão utilizar as suas competências de investigação e sancionatórias em matéria de abusos de posição dominante para intervir relativamente a concentrações que não atinjam os limiares de notificação nacionais, como já afirmado pelo Tribunal de Justiça no recente Acórdão Towercast, interpretando o artigo 102.º do TFUE11. Já estender este entendimento aos poderes da Comissão Europeia parece mais difícil, pois o artigo 21.º, n.º 1, do Regulamento das Concentrações é muito claro ao excluir a aplicação do Regulamento (CE) n.º 1/2003 (que estabelece as competências de investigação da Comissão ao abrigo dos artigos 101.º e 102.º do TFUE)12 à generalidade das transações que constituam “concentrações de empresas”, na aceção do Regulamento.
O acórdão Illumina/Grail reafirma princípios basilares do regime europeu do controlo de concentrações de empresas, em particular a segurança jurídica e a previsibilidade para as empresas, bem como a importância de uma repartição precisa das competências entre a Comissão e as autoridades nacionais. Todas as soluções que não passem por uma alteração legislativa dos limiares do Regulamento das Concentrações (que até à data a Comissão tem evitado) terão que ser avaliadas à luz destes princípios, recordados de forma particularmente clara e feliz pelo Tribunal de Justiça neste Acórdão.
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1Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), Illumina c. Comissão, procs. C-611/22P e C-625/22P.
2Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas, JO L 24, de 29.01.2004, pp. 1-22 (Regulamento das Concentrações).
3Cf. a Comunicação da Comissão Orientações sobre a aplicação do mecanismo de remessa previsto no artigo 22.º do Regulamento das Concentrações a certas categorias de casos, de 26 de março de 2021, C(2021) 1959 final.
4Acórdão de 13 de julho de 2022, Illumina c. Comissão, proc. T-227/21.
5Commission prohibits acquisition of GRAIL by Illumina, comunicado de imprensa IP/22/5364, de 6 de setembro de 2022.
6Mergers: Commission starts investigation for possible breach of the standstill obligation in Illumina/GRAIL transaction, comunicado de imprensa IP/21/4322, de 20 de Agosto de 2021.
7Mergers: Commission fines Illumina and GRAIL for implementing their acquisition without prior merger control approval, comunicado de imprensa IP/23/3773, de 12 de julho de 2023.
8Commission approves Illumina's plan to unwind its completed acquisition of GRAIL, comunicado de imprensa IP/24/1964, de 12 de abril de 2024.
9Illumina completes the divestiture of GRAIL, comunicado de imprensa de 24 de junho de 2024.
10Statement by Executive Vice-President Margrethe Vestager on today's Court of Justice judgment on the Illumina/GRAIL merger jurisdiction decisions, STATEMENT/24/4525, de 3 de setembro de 2024.
11Acórdão de 16 de março de 2023, Towercast, proc. C-449/21.
12Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.º e 102.º do TFUE], JO L 1 de 4.1.2003, p. 1.