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25.05.2023

Legal Alert | Transmissão de programas: o mecanismo da injeção direta

A. ENQUADRAMENTO

Na sequência da Proposta de Lei n.º 51/XV/1 do Governo (“Proposta de Lei n.º 51/XV”) sobre a transposição da Diretiva (UE) 2019/789 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019 (“Diretiva (UE) 2019/789”), foi publicada, em 27 de fevereiro deste ano, a Lei n.º 7/2023 que autoriza o Governo a legislar sobre as matérias abrangidas pela referida diretiva.

É de notar que a Diretiva (UE) 2019/789, relativa a direitos de autor e direitos conexos aplicáveis a determinadas transmissões em linha, estabelece a data de 7 de junho de 2021 como prazo limite para a sua transposição nos Estados-membros, encontrando-se, por isso, o Estado português, numa situação de incumprimento há quase dois anos.

A proposta de decreto-lei que o Governo apresentou no início do ano para transpor a Diretiva (UE) 2019/789 foi objeto de consulta pública, tendo essa fase terminado no passado dia 7 de março de 2023. Da análise desse projeto, constata-se que o decreto‑lei pretende, inter alia:

  • Definir e alterar conceitos, tais como “serviço acessório em linha” e “retransmissão”, de forma a abranger outros meios técnicos de distribuição de sinais de televisão para além dos sistemas de micro-ondas e “retransmissão por cabo”;
  • Estabelecer as condições de aplicabilidade do princípio do país de origem aos serviços acessórios em linha, para efeitos da determinação da lei aplicável em matéria de direitos de autor e direitos conexos e da fixação do montante da remuneração devida pelos respetivos direitos;
  • Estabelecer o regime do exercício dos direitos de retransmissão por titulares de direitos que não sejam organismos de radiodifusão;
  • Alargar o regime de gestão coletiva obrigatória a todos os serviços compreendidos no âmbito do conceito “retransmissão”, assegurando aos titulares de direitos de autor e direitos conexos uma remuneração adequada pela retransmissão das suas obras e outro material protegido;
  • Estabelecer a aplicabilidade do regime de mediação civil e comercial às situações de falta de acordo entre uma ou mais entidades de gestão coletiva de direito de autor e direitos conexos ou um ou mais organismos de radiodifusão e um ou mais operadores de um serviço de retransmissão relativamente às condições da autorização para a retransmissão de emissões;
  • Definir o conceito “injeção direta” e estabelecer o regime jurídico aplicável aos serviços de programas abrangidos por esse conceito.

Ora, um dos aspetos mais interessantes e inovadores do projeto de decreto-lei é precisamente este regime da injeção direta, que decorre do artigo 8.º da Diretiva (UE) 2019/789. Este tema tem sido pouco discutido em Portugal, o que é surpreendente uma vez que esta técnica de transmissão de conteúdos televisivos é atualmente a predominante em território nacional. Com efeito, segundo um estudo económico, divulgado em 20171, sobre a distribuição de canais televisivos na União Europeia (UE), chegou-se às seguintes conclusões: (i) os sinais de programação televisiva eram esmagadoramente transmitidos através do método da injeção direta, sendo inclusive este método técnico mais popular na Europa (com 78% dos canais entregues às plataformas de televisão em geral e 87% às plataformas de televisão paga); e (ii) 79% de todas as retransmissões transfronteiriças eram realizadas por injeção direta.

B. INJEÇÃO DIRETA – DEFINIÇÃO E PRINCÍPIOS GERAIS

A injeção direta corresponde a uma técnica de emissão de sinais portadores de programas na qual os organismos de radiodifusão transmitem esses sinais diretamente aos distribuidores, sem haver uma disponibilização simultânea ao público.

Segundo a Diretiva (UE) 2019/789, este mecanismo de transmissão de sinais é tratado como um “único” ato de comunicação ao público, em que participam tanto o organismo de radiodifusão, como o distribuidor de sinais, com as suas respetivas contribuições. Consequentemente, de acordo com o legislador europeu, o organismo de radiodifusão e o distribuidor de sinal devem obter autorização dos titulares dos direitos de autor e dos direitos conexos para proceder a este ato único de comunicação ao público.

A introdução desta solução na Diretiva (UE) 2019/789 teve o propósito claro de sanar a incerteza jurídica em torno da obtenção de direitos de propriedade intelectual aquando da utilização do mecanismo de injeção direta por parte do organismo de radiodifusão e do distribuidor de sinais.

C. CONTEXTO HISTÓRICO – PROCESSO C-325/14 DO TJUE

O acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), de 19 de novembro de 2015, no processo C-325/14 (SBS Belgium NV (“SBS”) vs. Belgische Vereniging van Auteurs, Componisten en Uitgevers (“SABAM”)), demonstrou a necessidade de haver regras claras a respeito do fenómeno da injeção direta, em particular nos casos em que um operador de distribuição de sinais recebe os sinais de um canal através de uma linha de telecomunicações “fechada”, em vez de receber os sinais terrestres ou via satélite de um radiodifusor.

O acórdão debruçou-se igualmente sobre a questão da responsabilidade do radiodifusor e do distribuidor (que disponibiliza o sinal aos seus assinantes) na obtenção de autorizações dos titulares de direitos de autor e direitos conexos.

O processo teve início com uma ação instaurada pela SABAM no tribunal competente em Bruxelas, em que esta exigia ao organismo de radiodifusão SBS o pagamento de royalties que rondavam quase 1 000 000 EUR. A SABAM alegava que a SBS necessitava de obter uma autorização específica dos titulares de direitos autorais para transmitir a sua programação utilizando o método de injeção direta e, por conseguinte, que o montante supra referido lhe era devido.

No seguimento da ação instaurada em Bruxelas, o tribunal remeteu a seguinte questão para o TJUE: um organismo de radiodifusão que transmite os seus programas exclusivamente através da técnica da injeção direta pratica um ato de comunicação ao público?

Após a devida reflexão, o TJUE considerou que a SBS não estava a comunicar obras ao público. Segundo o mesmo tribunal europeu, os distribuidores forneciam um serviço autónomo, transmitindo o sinal aos seus assinantes. Por outro lado, os assinantes do serviço privado pagavam o valor de subscrição aos distribuidores, não podendo os primeiros aceder ao sinal sem que a transmissão fosse efetuada pelos últimos. Concluiu, assim, o TJUE, que o “público” em questão nestes processos de injeção direta são os assinantes e os distribuidores as entidades que comunicavam ao público os programas (os quais contêm conteúdos protegidos por direitos de autor). Consequentemente, numa situação de injeção direta, a SBS estava envolvida na cadeia, mas não comunicava as obras televisivas ao público. A jurisprudência, neste caso, parece defender um modelo em que apenas os distribuidores terão de pagar os respetivos direitos de autor e direitos conexos.

No entanto, o TJUE distinguiu estes casos das situações em que o distribuidor apenas presta um serviço técnico ao organismo de radiodifusão (como acontece, por exemplo, em Portugal, com o serviço da televisão digital terrestre (“TDT”)). Neste último cenário, uma vez que o distribuidor apenas disponibiliza os seus meios técnicos e não cobra o serviço a assinantes, considera-se que é o próprio organismo de radiodifusão que concretiza a comunicação ao público.

D. O NOVO REGIME JURÍDICO  

O artigo 8.º da Diretiva (UE) 2019/789 consagra os seguintes pontos:

  • O processo pelo qual um organismo de radiodifusão transmite os seus sinais portadores de programas, através de uma linha privada aos seus distribuidores (de forma a que os sinais portadores de programas não sejam simultaneamente acessíveis ao público durante essa transmissão), corresponde a um ato “único” de comunicação ao público;
  • Tanto o radiodifusor como o operador de distribuição de sinais são responsáveis pelas suas respetivas contribuições nesse ato de comunicação ao público, tendo ambos o dever de obter as necessárias autorizações dos titulares de direitos.

Sendo norma de transposição obrigatória, as disposições referidas acima foram vertidas no projeto de decreto-lei apresentado pelo Governo. Adicionalmente, inclui o projeto de decreto-lei o disposto no Considerando 20 da Diretiva (UE) 2019/789, nomeadamente que este ato de comunicação ao público não deverá dar origem à responsabilidade solidária entre organismo de radiodifusão e o distribuidor de sinais.

É importante notar que, apesar do artigo 8.º da proposta de decreto-lei não o mencionar, o mesmo Considerando esclarece que se o papel do distribuidor de sinais for meramente o de prestar um serviço técnico ao radiodifusor, tal como abordado na jurisprudência acima indicada, apenas o radiodifusor será responsável pelo ato de comunicação ao público.

Por outro lado, nos termos da Diretiva (UE) 2019/789, os Estados-membros são livres de determinar, a nível nacional, o modo de obtenção das autorizações dos titulares de direitos, incluindo os pagamentos a efetuar aos mesmos pela exploração das suas obras pelos (i) organismos de radiodifusão e (ii) os distribuidores de sinais.

A Diretiva (UE) 2019/789 deixa ainda à livre discricionariedade dos Estados‑membros a possibilidade de preverem que os distribuidores de sinais beneficiem de um mecanismo de gestão coletiva obrigatória dos direitos (em particular, para a recolha e a distribuição das receitas cobradas neste âmbito). Na proposta de decreto-lei apresentada pelo Governo, este propõe que a autorização de comunicar ao público por injeção direta constitua um direito exclusivo dos titulares de direitos de autor e direitos conexos que poderá obter-se por contrato individual ou por acordo celebrado com as entidades de gestão coletiva de direitos de autor e direitos conexos. Isto significa que o Governo português optou por não prever a obrigatoriedade de licenciamento coletivo.

É referido ainda o projeto de decreto-lei que os acordos coletivos que tenham por objeto o exercício deste direito de injeção direta são extensivos a todos os titulares de direitos pertencentes à categoria representada pela entidade de gestão coletiva em causa, exceto se os titulares de direitos excluírem expressamente a extensão desses acordos às suas obras (i.e., opt-out).

E. CONCLUSÕES

Adotando uma posição ligeiramente diferente daquela que é defendida pelo TJUE no processo SBS vs. SABAM, o legislador europeu quis aproveitar a Diretiva (UE) 2019/789 para assegurar que tanto o organismo de radiodifusão como o distribuidor partilharão a responsabilidade de obter as autorizações necessárias dos titulares de direitos de autor e direitos conexos quando as obras e prestações destes são utilizadas em programas transmitidos através de injeção direta.

Esta alteração é extremamente relevante uma vez que, nos dias de hoje, em Portugal, a programação televisiva é maioritariamente transmitida através da técnica de injeção direta. Ou seja, atualmente, os radiodifusores nacionais já não difundem os seus programas diretamente ao público pelos meios tradicionais (i.e., por ondas hertzianas), tendo adotado outras tecnologias mais modernas de transmissão de conteúdos.

Por outro lado, dependendo da forma como a norma for implementada em Portugal, o novo regime da injeção direta pode obrigar a uma revisão profunda dos contratos em vigor entre os titulares de direitos (ou os seus representantes), de um lado, e os organismos de radiodifusão e os distribuidores, do outro2. As práticas que têm existido há mais de duas décadas no setor da distribuição de conteúdos audiovisuais irão certamente sofrer algumas alterações, não havendo ainda grande visibilidade sobre o impacto económico que isso terá nos players habituais. Aguarda-se, portanto, com alguma expetativa, a versão final do diploma que irá transpor a Diretiva (UE) 2019/789 para o ordenamento jurídico nacional.


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1 O estudo foi baseado em dados recolhidos pela Ampere Analysis, em 2016, e acolhido pela AGICOA (Association of International Collective Management of Audiovisual Works) e pela SAA (Society of Audiovisual Authors).

2 Nos termos da Diretiva (UE) 2019/789, os contratos existentes que regulem as autorizações para os atos de comunicação ao público permanecem inalterados durante seis anos a partir da entrada em vigor da referida diretiva (até 7 de junho de 2025).