No passado dia 22 de Março, após uma das mais concorridas consultas públicas sobre matérias jurídicas jamais realizadas em Portugal, o Parlamento aprovou a nova Lei da Concorrência (“LdC”).
A ideia de rever a LdC tem vindo a ser discutida há algum tempo – pelo menos desde 2008 – mas foi apenas em 2011 que ela se tornou uma das prioridades do Governo. No Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica (“Memorando”), celebrado em 17 de Maio de 2011 entre o Governo Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, a revisão da LdC foi considerada um marco estrutural do programa de assistência financeira.
Os principais objectivos por detrás desta ideia são os de tornar a LdC o mais autónoma possível face ao direito administrativo e ao direito processual penal e mais harmonizada com o quadro jurídico de concorrência vigente na União Europeia. Em particular, o Memorando fixa os seguintes objectivos: (i) simplificar a lei, separando claramente as regras sobre a aplicação de procedimentos de concorrência das regras aplicáveis aos procedimentos criminais, no sentido de assegurar a aplicação efectiva da LdC; (ii) racionalizar as condições que determinam a abertura de investigações por parte da Autoridade da Concorrência (“AdC”), permitindo-lhe avaliar a importância das queixas recebidas; (iii) estabelecer os procedimentos necessários para um maior alinhamento entre os regimes nacional e europeu em matéria de controlo de concentrações, nomeadamente no que toca aos critérios de notificação; (iv) garantir mais clareza e segurança jurídica na aplicação do direito administrativo processual ao controlo de concentrações; e (v) avaliar o processo de recurso e ajustá-lo onde necessário para aumentar a equidade e a eficiência dos procedimentos.
O texto da nova LdC que é conhecido contém importantes inovações face à lei actual. No entanto, existem razões para recear que o novo regime jurídico da concorrência possa ficar aquém dos objectivos propostos e suscitar ainda um conjunto adicional de questões.
No que respeita ao objectivo (i), reconhece-se que a criação de um estatuto processual específico para os procedimentos sancionatórios de concorrência, com regras próprias e prazos indicativos para a conclusão das investigações, representa um passo muito relevante no sentido da segurança jurídica. O problema, parece-nos, reside no facto de, ao mesmo tempo que se institui um procedimento especial para os processos sancionatórios de concorrência alegadamente distinto do que é aplicável às matérias criminais, a verdade é que, por um lado, muitas componentes do procedimento concorrencial continuam, porém, a ser subsidiariamente regidas – embora não se perceba exactamente em que medida – pelo regime geral das contra-ordenações, e, por outro, a nova LdC confere à AdC prerrogativas de natureza criminal sem ponderar adequadamente os direitos de defesa das empresas e das pessoas singulares.
Por exemplo, o objectivo (i) está centrado na simplificação da lei e na introdução de maior autonomia entre as regras sobre procedimentos sancionatórios de direito da concorrência e procedimentos de direito penal. No entanto, na própria exposição de motivos da LdC se declara a intenção de salvaguardar aquilo que se apelidam de «grandes traves mestras do aparelho jurídico sancionatório aplicável, nomeadamente, o Regime Geral das Contra Ordenações». Este aspecto é depois reforçado ao longo de várias normas da LdC, onde se prevê que as regras em matéria de contra-ordenações são aplicáveis subsidiariamente às investigações e aos recursos de processos de concorrência. E algures de permeio, a LdC contém tanto regras que se desviam dos princípios gerais aplicáveis às contra-ordenações em Portugal (e.g., a jurisdição plena dos tribunais de recurso para apreciar as decisões da AdC que apliquem sanções, a regra do efeito devolutivo dos recursos, e a prerrogativa conferida à AdC de emitir notas de ilicitude complementares já depois de as empresas terem exercido o seu direito de defesa) como regras que estão reservadas para as ofensas criminais e, em alguns casos, apenas para as mais gravosas (e.g., o poder da AdC levar a cabo buscas domiciliárias e em escritórios de advogados e médicos).
Relativamente ao objectivo (ii) da revisão da LdC, o que decorre do texto que é conhecido é que, no essencial, a AdC deixa de estar vinculada pelo princípio da legalidade na investigação e punição dos ilícitos concorrenciais, passando a poder estabelecer prioridades no exercício da sua missão. A grande dificuldade, em nossa opinião, do princípio da oportunidade é traçar um correcto equilíbrio entre o interesse da flexibilidade na alocação de recursos, por um lado, e a salvaguarda dos direitos de defesa dos queixosos e dos arguidos, por outro.
As soluções que, neste particular, constam da LdC têm por objectivo combinar estes dois propósitos, mas é a própria aplicação do princípio da oportunidade a uma autoridade nacional de concorrência que suscita muitas reservas. É fácil de compreender o motivo pelo qual a Comissão Europeia desenvolve a sua actividade com base no princípio da oportunidade. Por outro lado, se a Comissão recusar uma queixa que lhe seja apresentada, o queixoso poderá sempre dirigir-se às autoridades nacionais. É por este motivo que se torna difícil de aceitar para um advogado que as autoridades nacionais de concorrência possam, à partida, decidir quais os casos que aceitam e que recusam apenas na base das suas diferentes prioridades ou da informação que é prestada pelo próprio queixoso por sua iniciativa.
A circunstância de, nos termos da LdC, as decisões da AdC que recusem dar seguimento a uma queixa serem recorríveis não é decisiva, se, num primeiro momento, a própria escolha das prioridades por parte da AdC não for sindicável. Outra questão que pode vir a ser problemática é a de saber como pode a AdC, logo à partida, recusar uma queixa, por exemplo, porque existe uma baixa probabilidade de vir a provar a existência de uma infracção ou porque as diligências de investigação necessárias a essa demonstração são demasiado penosas – exemplos que estão previstos na própria LdC – sem, antes do mais, investigar previamente o caso. E se, com efeito e mesmo nestas situações, a AdC tem que investigar pelo menos um mínimo para decidir não prosseguir com o caso, a verdade é que qualquer diligência de investigação desta natureza deve ser levada a cabo no quadro de um processo formal de investigação, por forma a que as empresas e as pessoas visadas possam exercer adequadamente os seus direitos de defesa.
No que concerne aos objectivos (iii) e (iv), que versam sobre o procedimento de controlo de concentrações, a nova LdC apresenta importantes novidades face à actual lei, tais como a eliminação do prazo de notificação, ajustamentos nos limiares de volumes de negócios que desencadeiam a obrigação de notificação de forma a adaptá-los à realidade económica do País, e a criação, na fase 2 do procedimento, de um mecanismo semelhante à comunicação de objecções existente no direito da União.
Há, no entanto, outros aspectos que continuam a ser especificidades do regime português de controlo de concentrações e que são susceptíveis de gerar incerteza para as partes envolvidas em transacções sujeitas a notificação à AdC. O principal foco de preocupação, no nosso entender, é a dificuldade em prever a duração estimada do procedimento, dado que qualquer informação requerida pela AdC suspende a contagem do prazo da investigação e não existe qualquer limite quanto ao número e à duração dessas suspensões.
Finalmente, o objectivo (v) da LdC tem que ver com os mecanismos de recurso, embora não seja facilmente apreensível em que medida as alterações introduzidas irão aumentar a equidade e a eficiência a este nível, como é anunciado no Memorando e no preâmbulo da nova lei. A própria ideia que subjaz à alegada necessidade de se alterar a actual lei para atingir este objectivo e para dissuadir as empresas de recorrerem das decisões da AdC em processos sancionatórios é, a nosso ver, enganadora. A presunção de inocência e o direito a um processo justo e equitativo são dois princípios básicos e universais em qualquer sociedade democrática. Os factos também mostram que num número significativo de recursos, os tribunais portugueses acabaram por decidir a favor dos recorrentes, anulando, no todo ou em parte, as decisões da AdC, tanto com fundamentos processuais como substantivos, o que demonstra a necessidade de se continuar a manter um escrutínio judicial efectivo da actividade da AdC neste campo.
Para nós, o aspecto mais crítico da LdC a este respeito é o facto de os recursos deixarem de ter efeito suspensivo e passaram a ter, em regra, efeito meramente devolutivo. Esta alteração é contrária a toda a cultura jurídica em procedimentos de natureza penal e contra-ordenacional e suscita sérias reservas do ponto de vista da sua constitucionalidade. Acresce ainda que, como vimos, a medida nem sequer é justificável de uma perspectiva de política de concorrência.
Em suma, a iniciativa de revisão do regime jurídico da concorrência foi eleita como um marco estrutural do plano de assistência financeira a Portugal, por ser um meio para melhorar a aplicação do direito da concorrência e, desta forma, impulsionar a competitividade da economia nacional. O tempo e, sobretudo, a utilização que venha a ser feita da nova LdC dirão se o novo texto estará à altura destes objectivos e expectativas.
Vale também a pena relembrar que a LdC é apenas um entre vários instrumentos capazes de contribuir para uma aplicação efectiva do direito da concorrência. Tão importantes como os textos são as acções. É incompreensível que o Memorando estabeleça metas específicas para melhorar a necessária independência dos reguladores sectoriais nacionais (incluindo melhores práticas de nomeação, responsabilidades, âmbito de actividade, poderes de intervenção e mecanismos de articulação com a AdC) e que, com respeito a esta, exista apenas um compromisso por parte do Governo no sentido de assegurar que a AdC dispõe de meios financeiros suficientes e estáveis para garantir o seu funcionamento eficaz e sustentável, sem qualquer referência ao reforço da sua independência. Esperemos que este aspecto seja devidamente acautelado no contexto da revisão em curso do estatuto jurídico dos reguladores nacionais.
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1 Uma versão semelhante deste artigo foi publicada na newsletter de concorrência da International Law Office em 1 de Março de 2012, em momento ainda anterior ao da aprovação da LdC.