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31.01.2019

Nas Terras da (Para)Criminalidade Tribunal Europeu confirma carácter Penal de coima por obstrução a Dawn Raid de Autoridade de Concorrência

O caso Pro Plus c. Eslovénia

Os factos do caso Pro Plus c. Eslovénia1 reconduzem-se a uma inspeção-surpresa realizada na manhã de 11 de agosto de 2011 pela autoridade de concorrência eslovena às instalações da Pro Plus, proprietária da principal estação televisiva da Eslovénia, na sequência de denúncias apresentadas por duas estações concorrentes por suspeita de abuso de posição dominante.

Os funcionários que receberam os inspetores da autoridade recusaram-se a ser notificados da decisão de inspeção e não permitiram que a diligência se iniciasse sem instruções da administração da empresa (que se encontrava ausente), o que levou a que os inspetores tenham abandonado as instalações e regressado acompanhados pela polícia. A inspeção iniciou-se finalmente, quase duas horas depois da entrada inicial dos inspetores, após o administrador da empresa ter chegado e afirmado a plena colaboração com a autoridade. Em fevereiro de 2012, foi aplicada uma coima de 105 mil euros à empresa por obstrução à atividade investigatória da autoridade.

Em sede de recurso, o Supremo Tribunal da Eslovénia recusou o pedido da Pro Plus a uma audiência oral e à inquirição das suas testemunhas, pelo que a empresa apresentou uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Convenção), que consagra o direito a um processo equitativo em processos de natureza penal.

Não obstante as sanções previstas na lei da concorrência eslovena terem formalmente cariz administrativo e serem aplicadas por uma autoridade administrativa, o TEDH concluiu pela aplicabilidade do artigo 6.º da Convenção ao caso.

De acordo com a jurisprudência do TEDH, a qualificação atribuída à sanção pelo direito nacional é apenas um de três critérios alternativos para aferir a natureza penal de uma sanção à luz do artigo 6.°, devendo o Tribunal atender igualmente à “natureza da norma” e à “natureza e ao grau de severidade da punição”. No caso, o TEDH considerou, por um lado, que a norma visava assegurar o exercício efetivo dos poderes de autoridade pública, no interesse geral da sociedade (que também era protegido pelo código penal na Eslovénia), e, por outro, que o montante da coima efetivamente aplicada e o seu montante máximo (500 000 euros) eram significativos e que a aplicação da sanção passados mais de seis meses da inspeção evidenciava um propósito essencialmente punitivo e de dissuasão de infrações futuras.

Por estas razões, o Tribunal entendeu ser de aplicar o artigo 6.° da Convenção, o que impunha um controlo judicial pleno da decisão da autoridade, incluindo o exame completo dos factos (e não apenas do direito aplicável). Como o Supremo Tribunal esloveno, o único a intervir na causa, se havia recusado a apreciar os factos aduzidos pela empresa e a audição de testemunhas para fazer a respetiva prova, o TDEH declarou violado o direito fundamental a um processo justo e equitativo, tendo condenado o Estado Esloveno ao pagamento de uma indemnização e despesas à Pro Plus de 62 500 euros.

Comentário

O caso Pro Plus traz um renovado contributo, alertando os legisladores e os tribunais nacionais para a irrelevância da qualificação formal das sanções por violação das regras de concorrência quando estas sejam potencialmente elevadas e tenham um intuito essencialmente punitivo – o que corresponde efetivamente à realidade tanto em Portugal como na generalidade dos outros Estados-Membros.

O TEDH já havia confirmado em 2011, no conhecido acórdão Menarini2, que uma coima de 6 milhões de euros pela violação das regras substantivas da lei da concorrência italiana em matéria de cartéis constituía uma sanção de natureza penal para efeitos do artigo 6.º da Convenção, não obstante o direito nacional a caracterizar como administrativa. Com o acórdão Pro Plus, esta jurisprudência parece tornar-se extensível a praticamente “todas” as sanções aplicadas por uma autoridade administrativa pela violação das regras de direito da concorrência, mesmo que estejam em causa regras processuais (como as que exigem colaboração durante ações de inspeção) e as coimas sejam de valor relativamente limitado (no caso da Pro Plus, de “apenas” 105 mil euros).

Isto quer dizer que, independentemente da caracterização das sanções como administrativas, o cumprimento do artigo 6.º da Convenção torna plenamente aplicável aos processos sancionatórios perante as autoridades administrativas – como a Autoridade da Concorrência, em Portugal – um conjunto de princípios basilares, incluindo os direitos de audiência e defesa, mas sobretudo o direito a um recurso judicial por um tribunal independente que exerça um controlo pleno, incluindo a reapreciação dos factos e da prova, sem qualquer limitação.

Por fim, o acórdão Pro Plus constitui também uma recordatória importante para a conveniência de as empresas implementarem, designadamente nos seus programas de compliance, procedimentos internos para reagir a inspeções-surpresa das autoridades de concorrência, incluindo a atribuição clara de responsabilidades a todos os colaboradores relevantes (em particular os da receção), a fim de excluir o risco de acusações de obstrução à inspeção e de coimas que, tanto no caso da Comissão Europeia como da Autoridade da Concorrência, podem atingir 1% do volume de negócios anual da empresa visada.

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1 Acórdão do TEDH (Quarta Secção), de 23 de outubro de 2018, Produkcija Plus Storitveno Podjetje D.O.O. v. Slovenia, proc. 47072/15.
2 Acórdão do TEDH (Segunda Secção), de 27 de setembro de 2011, Menarini Diagnostics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08, analisado na nossa newsletter de dezembro de 2011 (p. 4)