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30.12.2013

Nova legislação em matéria de práticas individuais restritivas do comércio em vigor a partir de 25 de Fevereiro

O ano de 2014 traz consigo um novo regime jurídico para as chamadas “práticas individuais restritivas do comércio”. O Decreto-Lei n.º 166/2013 de 27 de Dezembro entrará em vigor a 25 de Fevereiro e introduz um conjunto de modificações de relevo no regime actual, no plano substantivo e sancionatório.

O diploma actualmente em vigor - DL 370/93 – conta já com 20 anos e era pacífica a necessidade de se repensar seriamente a sua reformulação. O sentido óptimo dessa reformulação era discutível, atento, por um lado, o relativo desuso da larga maioria das suas proibições (com excepção da venda com prejuízo), por outro lado, o potencial impacto negative de uma proibição reforçada da venda com prejuízo (preconizada por alguns stakeholders) sobre o nível geral de preços praticados junto do consumidor final (apontando neste sentido as experiências recentes de outros ordenamentos jurídicos) e, por fim, o facto de estarem em causa soluções legislativas em prol da lealdade e transparência das relações comerciais entre empresas, numa economia de mercado sujeita a princípios de livre concorrência, o que pareceria aconselhar um recorte mais fino das soluções legislativas, direccionadas aos sectores ou tipologia de operadores dela especialmente carenciado (ao invés da sua aplicação transversal).

A solução final acabou por manter, em larga medida, o statu quo ante (sem prejuízo de modificações relevantes ao nível da venda com prejuízo e do regime das práticas negociais abusivas criando-se, dentro deste último, um regime específico aplicável ao sector agro-alimentar), com um aumento muito significativo das coimas associadas.


Principais modificações ao nível substantivo

Formalmente, o leque de contra-ordenações mantém-se inalterado: aplicação de preços ou condições de venda discriminatórios; transparência nas políticas de preços e condições de venda; venda com prejuízo; recusa de venda; práticas negociais abusivas. Contudo, do ponto de vista substantivo, são introduzidas alterações profundas no âmbito concreto e alcance das mesmas, com especial relevo para a venda com prejuízo e as práticas negociais abusivas1.

Quanto à venda com prejuízo, o objectivo do legislador era o de clarificar o regime da facilitando a sua interpretação e a sua fiscalização. Com esse propósito, procedeu-se a uma redefinição de alguns conceitos fundamentais, com especial realce para o conceito de preço de compra efectivo, e previu-se expressamente que os descontos concedidos num determinado produtos são contabilizados no seu preço de venda. A letra da lei continua, porém, a deixar larga margem para interpretações dúbias e soluções práticas de alcance incerto. Exemplo disso mesmo é a solução consagrada a propósito dos descontos “que consistam na atribuição de um direito de compensação em aquisição posterior de bens equivalentes ou de outra natureza”, ou seja, os descontos diferidos, do tipo “descontos em cartão” ou “desconto em talão”, prática corrente no comércio retalhista. Alguns destes descontos passam a relevar para efeitos de apuramento de uma prática de venda com prejuízo, mediante contabilização no preço de venda do produto. Porém, a formulação legal utilizada é ambígua e deixa margem para múltiplas interpretações quanto ao concreto âmbito dos descontos impactados e à sua forma de contabilização, ao estatuir que: “ (..) os descontos (..) concedidos em cada produto, são imputados à quantidade vendida do mesmo produto e do mesmo fornecedor nos últimos 30 dias”.

Ainda com relevo especial (mas não exclusivo) para a venda com prejuízo, adoptam-se regras específicas em matéria de aceitação, reclamação e rectificação de facturas, consagrando-se prazos muito curtos para essas operações: 25 dias para a reclamação de factura, após sua recepção (sob pena de aceitação); 20 dias para a rectificação pelo fornecedor, após reclamação. As alterações constantes de facturas rectificadas emitidas em data posterior aos prazos indicados, deixam de ser relevantes para apuramento da venda com prejuízo.

Por fim, uma empresa deixa de poder vender (legitimamente) com prejuízo, em resposta ao preço praticado por um outro agente económico do mesmo ramo de actividade, em situação de concorrência efectiva (atenta a eliminação da excepção legal respectiva).

A modificação mais profunda, no plano substantivo é efectuada ao nível das “Práticas negociais abusivas”, com um alargamento significativo do leque de práticas negociais previstas. Tais (novas) práticas negociais proibidas são, nuns casos, (i) aplicáveis a quaisquer empresas (independentemente da sua posição - fornecedor ou comprador -, dimensão ou sector) e, noutros, (ii) especificamente dirigidas à conduta de um comprador na sua relação com certos fornecedores agro-alimentares (as micro e pequenas empresas, organizações de produtores ou cooperativas). As soluções adoptadas suscitam contudo, algumas perplexidades, na medida em que se proíbe certas práticas negociais - como a modificação retroactiva de um contrato de fornecimento ou a obtenção de contrapartidas por promoções em curso ou já ocorridas ou ainda, especificamente no sector agro-alimentar, a rejeição ou devolução de bens, pelo comprador, com fundamento na menor qualidade de parte ou da totalidade da encomenda ou no atraso da entrega, sem demonstração da responsabilidade do fornecedor - em termos absolutos, ou seja, desvaloriza-se o resultado (proibindo-o), independentemente de qualquer consideração sobre se o mesmo não terá correspondido ao interesse das partes e/ ou resultado do seu acordo expresso ou tácito. Esta solução é desvantajosa, pelo seu pendor marcadamente intrusivo no conteúdo de relações económicas privadas e pela limitação que comporta na liberdade contratual das partes. Adicionalmente, é questionável, no plano legal, o acerto da solução quanto aos requisitos de rejeição ou devolução de produtos (de certos fornecedores agro-alimentares), em manifesta contradição com princípios básicos do direito civil, em matéria de cumprimento das obrigações e de responsabilidade contratual.

O conceito de práticas “abusivas” foi ainda densificado com a inclusão de (novas) práticas negociais que passam a ser proibidas apenas na medida em que revistam a natureza de “imposição” (ex: imposição da impossibilidade de venda de uma empresa a outra, a um preço mais baixo; imposição unilateral de realização de uma promoção ou de pagamentos como contrapartida de uma promoção e ainda, no sector agro-alimentar, a imposição de pagamentos directos ou indirectos (descontos) pela (i) não concretização de expectativa de vendas, (ii) introdução ou reintrodução de produtos, (iii) como compensação por custos de queixa do consumidor ou para cobrir desperdícios dos produtos do fornecedor, num e noutro caso, excepto se o comprador demonstrar que tal se deve a negligência, falha ou incumprimento contratual do fornecedor, entre outros. No entanto, fazer assentar o juízo de ilicitude (com as suas gravíssimas consequências) num conceito indeterminado desconhecido - de “imposição” - para o qual o decreto-lei não oferece uma definição, cria um grau não-despiciendo de incerteza para as empresas envolvidas, que é agravado pela natureza eminentemente dinâmica (e naturalmente aguerrida) das negociações comerciais e pelas oportunidades para utilizações abusivas do conceito de imposição (por quem dele possa beneficiar).


Sanções

Assiste-se a um agravamento muito significativo das coimas aplicadas, que passam a observar limiares mínimos e máximos distintos conforme a empresa infractora seja uma micro, pequena, média ou grande empresa (por referência aos limiares constantes da Recomendação n.º 2003/361/CE da Comissão Europeia). Assim, a título de exemplo, uma grande empresa pode ser sancionada por uma coima que oscila entre €5.000 e €2.500.000 (no caso das contra-ordenações mais severamente sancionadas, de que são exemplo as atrás referidas) e entre € 2.500 e €500.000, nos demais casos.


Fiscalização, instrução e decisão exclusivamente na esfera da ASAE

A instrução e decisão de processos de contra-ordenação por práticas restritivas do comércio, até agora da competência da Autoridade da Concorrência, passa para a esfera da ASAE (que mantém as suas competências em matéria de fiscalização). O decreto-lei confere ainda à ASAE competência para (i) decretar medidas cautelares de suspensão de execução da práticas consideradas restritivas e (ii) determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias (€2.000-€50.000/dia, até a um máximo de 30 dias e €1.500.000) por cada dia de incumprimento da medida cautelar decretada.


Âmbito de aplicação

Last but not least, é introduzida uma norma que trata expressamente do âmbito de aplicação do diploma, afastando-se do princípio da territorialidade em prol de uma outra solução - de interpretação mais complexa - de acordo com a qual o diploma é aplicável “às empresas estabelecidas no território nacional” (sem densificação adicional do conceito de empresa ou de estabelecimento); inversamente, não é aplicável a (i) serviços de interesse económico geral, (ii) compra e venda de bens e prestações de serviços em sectores regulados e (iii) compra de venda de bens e a prestação de serviços com origem ou destino em país não-EEE.


Comentário final

A entrada em vigor do novo regime jurídico imporá aos operadores afectados um esforço muito relevante de análise e avaliação das suas práticas comerciais por forma a garantir a sua adequação às novidades do novo regime. Essa análise é especialmente desafiante no caso em apreço pois o diploma acaba por não cumprir cabalmente as expectativas de maior clareza e maior facilidade de interpretação e aplicação gizadas pelo legislador. O novo regime é, nalguns pontos, desnecessariamente complexo, noutros, excessivamente ambíguo, e globalmente, faz antecipar um incremento da litigiosidade em torno da sua interpretação e aplicação.

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1 Outras modificações de cariz não-estrutural mas, ainda assim, com relevo potencial incluem: na aplicação de preços e condições de venda discriminatórios, a excepção de práticas conformes ao direito da concorrência; na exigência de publicitação de condições de venda, a salvaguarda da não-divulgação das condições que constituam segredos de negócio; na recusa de venda, o alargamento do elenco de causas justificativas.