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01.03.2013

Novo regime jurídico da clemência em Portugal

Introdução

Numa altura em que muito se tem discutido no nosso País o instituto dito da clemência em processos de natureza jusconcorrencial conduzidos pela Autoridade da Concorrência (“AdC”), pareceu-nos apropriado retomar aqui, de forma sintética, os principais traços que o caracterizam.

Antes da entrada em vigor da Lei da Concorrência (“LdC”), aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, o regime jurídico da dispensa e da atenuação especial da coima em processos de contra-ordenação por infracção às normas de concorrência era disciplinado pela Lei n.º 39/2006, de 25 de Agosto. Este diploma foi entretanto revogado pela LdC, que passou a estabelecer o regime jurídico da concorrência em Portugal, incluindo em matéria de clemência, a qual passou a estar definida nos respectivos artigos 75.º a 82.º

Vejamos agora alguns dos aspectos distintivos do actual regime de clemência, confrontando-os com os contornos e fragilidades do regime anterior.


Algumas características do regime nacional de clemência

Âmbito objectivo

Um dos aspectos mais curiosos do regime de clemência constante da anterior Lei n.º 39/2006 prendia-se com o seu âmbito objectivo. Ao arrepio do programa de clemência da Comissão Europeia e da Rede Europeia da Concorrência, que eram apenas aplicáveis às infracções de cartel, o legislador nacional quis ser mais ambicioso e estendeu o âmbito objectivo da clemência a quaisquer acordos e práticas concertadas restritivos da concorrência, independentemente da sua natureza horizontal ou vertical e do tipo de infracção que estivesse em causa.

No entanto, a própria prática veio demonstrar que este instituto é sobretudo procurado em casos de cartel, os únicos (ainda assim, apenas dois1) em que dele foi feito uso até agora em Portugal. Assim, na égide da LdC o âmbito objectivo da clemência foi substancialmente restringido, passando a cobrir apenas as infracções que tipicamente se caracterizam como cartéis, i.e. acordos e práticas concertadas entre concorrentes que tenham por objecto ou efeito coordenar o seu comportamento concorrencial no mercado em causa e/ ou influenciar parâmetros relevantes da concorrência, como preços e outras condições de transacção, quotas de produção ou venda ou repartição de mercados. A razão de ser desta restrição é simples: os cartéis representam as formas de infracção mais graves ao direito da concorrência e também aquelas que, pela sua natureza secreta, são mais difíceis de detectar e investigar.


Âmbito subjectivo

Neste particular, as alterações introduzidas pela LdC visaram alinhar a componente subjectiva do estatuto de clemência com o novo âmbito de responsabilidade prescrito pela lei. Assim, são elegíveis para dispensa e atenuação de coima as entidades que são chamadas a responder em caso de infracção. Isto significa que, para além das empresas e dos titulares dos respectivos órgãos de administração, passam a poder beneficiar também os responsáveis pela direcção ou fiscalização de áreas de actividade em que seja praticada a contraordenação.

Mantém-se a regra de que as pessoas singulares beneficiam automaticamente da clemência concedida à respectiva empresa (desde que cooperem com a AdC), embora o inverso não seja verdadeiro; se essas pessoas apresentarem o pedido de clemência a título individual, este apenas as beneficia a elas. Foi o que aconteceu, por exemplo, no citado “cartel das cantinas".


Modalidades de clemência

Este foi dos aspectos que maiores alterações sofreram com a entrada em vigor da LdC. No regime anterior, estavam disponíveis 4 modalidades de clemência: (i) dispensa de coima, reservada para os primeiros denunciantes que apresentassem informações e provas de uma infracção antes de a AdC ter procedido à abertura de um inquérito; (ii) atenuação especial superior a 50%, aplicável ao primeiro denunciante que apresentasse esses elementos já depois de aberto o inquérito, mas antes da notificação da nota de ilicitude; (iii) atenuação especial até 50%, disponível para o segundo denunciante que estivesse na mesma situação referida na hipótese anterior; e (iv) atenuação adicional, pensada para os casos em que uma entidade envolvida num processo de infracção fosse a primeira a reportar à AdC uma outra infracção.

O novo regime de clemência está mais próximo dos programas existentes a nível europeu, embora nem todas as alterações sejam, a nosso ver, para melhor.

Assim, a modalidade de dispensa de coima passa a estar disponível em função da utilidade dos elementos disponibilizados à AdC pelo primeiro denunciante, com vista a fundamentar a realização de buscas ou a existência de uma infracção, mesmo que esteja já em curso um inquérito contraordenacional.

As modalidades de atenuação (agora ditas de redução) de coima deixam de beneficiar apenas os dois primeiros denunciantes. O critério relevante passou a ser o do valor adicional significativo trazido pelas informações e provas, e os montantes de redução passam a ser escalonados em função da ordem de apresentação do pedido de clemência: redução de 30-50% para o primeiro denunciante; redução de 20-30% para o segundo denunciante; e redução até 20% para os denunciantes seguintes. Se o pedido for apresentado após a notificação da nota de ilicitude, estes níveis são reduzidos a metade.

Em complemento das exigências próprias de cada uma destas modalidades, existem depois requisitos comuns a todas elas, tais como a cooperação plena e contínua com a AdC e o termo da infracção.

O alargamento do leque de beneficiários e a menor valorização da etapa processual em que o pedido de clemência é submetido são factores positivos para potenciar o efeito útil da colaboração com a AdC. Aspectos menos positivos são, em nossa opinião, a eliminação da modalidade de atenuação especial superior a 50% e de atenuação adicional de coimas.


Procedimento

O processo de submissão e tramitação dos pedidos de clemência foi substancialmente revisto face ao regime anterior, que era particularmente rígido. Os pedidos passam a poder ser apresentados por escrito ou através de declarações orais e os meios de remessa foram alargados. De assinalar ainda a introdução de um sistema de marcador (também dito, marco), que permite aos requerentes saberem de antemão qual a sua posição na ordem de apresentação do pedido de clemência.

Foram ainda introduzidas regras específicas sobre a questão sensível do tratamento confidencial do pedido de clemência e respectivos anexos e do acesso a estes por parte de arguidos e terceiros, em linha com a prática decisória da Comissão Europeia e a jurisprudência mais recente dos tribunais da União.


Reflexões finais

O direito da concorrência em Portugal está hoje dotado de um regime de clemência globalmente coerente e equilibrado, em tese capaz de potenciar a colaboração entre empresas, particulares e a AdC. Trata-se, no entanto, de um dos instrumentos mais polémicos e complexos na investigação de infracções neste domínio. A sua utilidade depende de um delicado equilíbrio entre os vários riscos em confronto (desde logo, o risco de responsabilidade civil e de reincidência), aliado ao desafio prático da sua implementação em países, como o nosso, com um tecido económico reduzido.

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1 Referimo-nos ao alegado cartel das cantinas, punido em Dezembro de 2009 (http://www.concorrencia.pt/vPT/Noticias_Eventos/Comunicados/ Paginas/Comunicado_AdC_200924.aspx?lst=1&Cat=2009), e ao alegado cartel dos impressos e formulários comerciais, punido em Dezembro de 2012 (http://www.concorrencia.pt/vPT/Noticias_Eventos/Comunicados/Paginas/Comunicado_AdC_201216.aspx).

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