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31.12.2015

O Acórdão TJUE C-583/13 P Deutsche Bahn — O dever de fundamentação e a garantia dos direitos de defesa em ações inspetivas

A 18 de junho de 2015, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“Tribunal de Justiça” ou “TJUE”) foi confrontado com um recurso1 interposto pela Deutsche Bahn AG (“DB”) e pelas suas filiais, que pediam a anulação de um acórdão do Tribunal Geral, através do qual foi negado provimento ao seu recurso de anulação de três decisões da Comissão Europeia (“CE”) que ordenaram inspeções às referidas empresas por suspeita de violação de regras da concorrência. As inspeções em causa foram levadas a cabo sem mandado judicial prévio.


A inexistência de mandado judicial

Como fundamento do recurso, a DB alegou, em primeiro lugar, que o Tribunal Geral ignorou importante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (“TEDH”), na medida em que declarou que “a falta de um mandado judicial prévio constitui apenas um dos elementos levados em conta pelo TEDH para concluir pela existência de uma violação do artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (§ 14).

O TJUE respondeu ao primeiro argumento, afirmando que à luz da jurisprudência do TEDH a falta de um mandado judicial prévio “não é suscetível, por si só, de implicar a ilegalidade da medida de inspeção”. Com efeito, refere o Tribunal, a falta de mandado judicial prévio pode ser compensada por uma fiscalização jurisdicional a posteriori eficaz de todas as questões de direito e de facto, tal como se constata pelos acórdãos do TEDH Harju2 e Heino3.


A fiscalização judicial a posteriori

Relativamente a essa mesma fiscalização a posteriori, a DB alegou que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao postular que a falta de mandado judicial prévio pode ser compensada por aquela, dado que no acórdão no qual baseou o seu raciocínio a autoridade de concorrência em causa tinha obtido um mandado judicial antes de proceder às buscas.

A este respeito, o Tribunal de Justiça referiu que o Tribunal Geral declarou corretamente que o que está em causa é a “intensidade da fiscalização”, que inclui todos os elementos de facto e de direito, permitindo que a situação seja adequadamente sanada caso exista uma irregularidade, não relevando o momento em que essa fiscalização é exercida.


O dever de fundamentação e a violação dos direitos de defesa da DB

Por fim, a DB alegou que as categorias de garantias enunciadas pelo Tribunal Geral não garantem uma proteção suficiente dos seus direitos de defesa contra a ingerência no respetivo direito fundamental à inviolabilidade do domicílio que as inspeções realizadas pela Comissão representam. Com efeito, a empresa alegou que a Comissão não podia legitimamente informar os seus agentes, antes da primeira decisão de inspeção, de suspeitas a propósito da sua filial DUSS que conduziram às inspeções subsequentes por parte da Comissão.

O Tribunal de Justiça começou por relembrar que o Regulamento n.º 1/2003 impõe à Comissão que fundamente a decisão que ordena uma inspeção indicando o seu objeto e a sua finalidade, constituindo esta obrigação uma exigência fundamental não só para demonstrar o caráter justificado da intervenção, mas também “colocar as empresas em situação de conhecerem o alcance do seu dever de cooperação, preservando ao mesmo tempo o seu direito de defesa” (§ 56).

Para além disso, o TJUE sublinhou que as informações recolhidas no decurso das inspeções não devem ser utilizadas para finalidades diversas das indicadas na decisão de inspeção.

O Tribunal de Justiça considerou ainda que isto não significa que estivesse vedado à Comissão abrir um processo de inquérito a fim de verificar a exatidão ou de completar as informações de que tivesse tomado “casualmente” conhecimento no decurso das diligências de investigação, caso estas indiciassem comportamentos contrários às regras de concorrência.

Porém, no caso em apreço, decorria dos autos que a Comissão informou imediatamente os seus agentes, antes da realização da primeira inspeção, da existência de outra denúncia contra a filial da DB. Também importa recordar, como o fez o Advogado-Geral nas suas conclusões, que as informações fornecidas pela Comissão aos seus agentes devem “dizer unicamente respeito ao objeto da inspeção ordenada” (§ 62).

Estes elementos levaram o Tribunal de Justiça a concluir que esta informação é alheia ao objeto da primeira decisão de inspeção e que a inexistência de menção à denúncia sobre a filial da DB na decisão de inspeção viola o dever de fundamentação da Comissão e os direitos de defesa da DB. Com efeito, foi reconhecido expressamente pelo Tribunal Geral, que “o facto de a segunda decisão de inspeção ter sido adotada no decurso da primeira inspeção demonstra a importância das informações então recolhidas para o lançamento da segunda inspeção e que a terceira inspeção foi, sem dúvida, parcialmente baseada nas informações recolhidas nas duas primeiras inspeções” (§ 65).

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça anulou o acórdão recorrido na medida em que negou provimento ao recurso relativamente à segunda e terceira decisões de inspeção.

Este caso lança pistas e avisos importantes aos tribunais e às autoridades nacionais quanto à forma de articulação entre as prerrogativas inspetivas dessas autoridades e os direitos de defesa dos visados.


Este artigo foi escrito em co-autoria com o advogado Miguel Cortes Martins.

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1 Caso C-583/13 P Deutsche Bahn
2 Caso n.º 56716/09 Harju c. Finlândia , de 15 de fevereiro de 2011
3 Caso n.º 56720/09 Heino c. Finlândia, de 15 de fevereiro de 2011

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