Introdução
Decorridos mais de seis meses do referendo de 23 de junho de 2016, no qual a maioria dos eleitores britânicos votou pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE), não se produziu ainda qualquer alteração no seu estatuto enquanto Estado-Membro de pleno direito da UE.
Com efeito, até que seja celebrado um acordo de saída, na sequência do processo estabelecido no Tratado da União Europeia, a legislação europeia, bem como todos os direitos e obrigações que dela resultam, continuam a aplicar-se plenamente ao Reino Unido.
Segundo o Governo britânico o processo deverá iniciar-se formalmente até ao fim do próximo mês de março, devendo em princípio conduzir à saída do Reino Unido da UE até março de 2019. No entanto, os termos do acordo de saída e da nova relação do Reino Unido com a UE permanecem ainda rodeados de alguma incerteza.
O processo de saída
O direito de secessão e o processo de saída de um Estado-Membro da UE encontram-se previstos no artigo 50.° do TUE desde a entrada em vigor, em 2009, do Tratado de Lisboa. Este processo, que é agora aplicado pela primeira vez, constitui a base jurídica para a negociação e efetivação da saída do Reino Unido da UE.
O processo deve ser iniciado pelo Estado-Membro que pretende retirar-se da UE através da notificação formal ao Conselho Europeu da sua intenção de sair. A entrega desta notificação desencadeia a contagem de um prazo de dois anos para o Estado-Membro e a UE negociarem as condições da saída. Após o termo do prazo de dois anos, mesmo na ausência de acordo o Estado deixa automaticamente de ser membro da UE, a não ser que o Conselho Europeu, por unanimidade, consinta em prorrogar tal prazo.
Não existe qualquer prazo para a designada “notificação do artigo 50.°”, pelo que o momento da sua apresentação é sobretudo uma decisão de natureza política.
Após grande controvérsia no Reino Unido sobre a competência do Governo para apresentar esta notificação, no passado dia 24 de janeiro o Supremo Tribunal do Reino Unido confirmou, no acórdão Miller, que os princípios da Constituição (não escrita) do Reino Unido impedem o Governo de decidir unilateralmente iniciar o processo de saída, nos termos do artigo 50.° do TUE, sem a aprovação prévia do Parlamento britânico1.
Na sequência do acórdão Miller foi entretanto apresentado um projeto de lei ao Parlamento com vista a autorizar o Governo a submeter a notificação do artigo 50.°2, o que pretende fazer até ao fim do próximo mês de março3.
Nos últimos meses surgiram vários apelos, sobretudo no Reino Unido, ao início de negociações informais com as instituições europeias antes da notificação formal do artigo 50.°. No entanto, os Chefes de Estado e de Governo dos restantes 27 Estados-Membros, bem como os presidentes do Conselho Europeu e da Comissão, declararam perentoriamente que “não pode haver qualquer tipo de negociações até ter sido feita esta notificação”4, e o Presidente da Comissão anunciou ter proibido os comissários e diretores-gerais da Comissão de iniciar conversações com representantes britânicos enquanto não fosse apresentada a notificação formal5.
Uma vez recebida a notificação, nos termos do artigo 50.° o Conselho Europeu deve adotar orientações para as negociações de um acordo com o Reino Unido. Na prática, é provável que as negociações sejam conduzidas pela Comissão Europeia, em representação da UE, e pelo Governo do Reino Unido. O resultado de tal negociação deverá ser um acordo, materializado na celebração de um Tratado entre a UE (a 27) e o Reino Unido, que estabeleça as condições detalhadas da saída do Reino Unido, igualmente “tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União”. No entanto, o âmbito preciso das negociações para a saída, e em que medida as mesmas deverão abranger as relações futuras do Reino Unido com a UE (que poderão ser objeto de um acordo separado), permanece em aberto e deverá ser objeto de acordo entre as partes.
Após negociado, o acordo de saída deverá ser aprovado pelo Parlamento Europeu (por maioria simples) e celebrado pelo Conselho da UE (deliberando por maioria qualificada, sem o Reino Unido). O acordo deverá subsequentemente ser ratificado pelo Reino Unido, de acordo com as suas disposições constitucionais nacionais.
As estimativas para a duração das negociações variam consideravelmente. Na campanha que antecedeu o referendo, o Governo britânico declarou que seria necessária “mais de uma década” para negociar a saída da UE, os termos da relação futura com a UE e os acordos internacionais com países terceiros, pois os acordos internacionais em que a UE é parte deixarão de vigorar no Reino Unido após a saída deste da União6.
O Governo britânico declarou recentemente que pretende concluir um acordo sobre a relação futura com a UE até março de 2019, a que se seguirá um processo de implementação faseado, no qual tanto o Reino Unido como as instituições europeias e os Estados-Membros se adaptarão gradualmente aos termos da nova relação que tiver sido acordada, e cuja duração poderá depender da matéria em questão (ex. controlos de imigração, cooperação em matéria criminal ou regulação de serviços financeiros)7.
Possíveis modelos para a relação Reino Unido-UE
Foram avançados vários modelos exis-tentes como base para a relação futura entre o Reino Unido e a UE:
- O “modelo norueguês”: adesão à Associação Europeia do Comércio Livre (EFTA) e ao Acordo do Espaço Económico Europeu (EEE), a fim de assegurar o acesso ao mercado interno europeu8. No entanto, enquanto membro do EEE o Reino Unido estaria obrigado a aplicar, designadamente, a legislação europeia em matéria da livre circulação de pessoas, uma das principais questões controversas no contexto do referendo, bem como a contribuir financeiramente para o funcionamento da UE, em medida a determinar (deixando contudo de beneficiar dos fundos europeus, reservados aos Estados-Membros).
- O “modelo suíço”: aderir apenas à EFTA, à semelhança da Suíça, o único membro desta associação que não aderiu ao EEE. A Suíça mantém em vigor um conjunto de acordos bilaterais com a UE que lhe proporcionam acesso a determinadas áreas do mercado interno europeu. Significativamente, porém, os acordos em vigor com a Suíça não incluem serviços financeiros, que são essenciais para a economia do Reino Unido. A Suíça aceitou igualmente o princípio da livre circulação de cidadãos da UE.
- Um acordo de comércio livre bilateral, como os celebrados com o Canadá ou com Singapura9. Estes acordos bilaterais, quando entrarem em vigor, proporcionarão um acesso praticamente integral ao mercado interno de mercadorias e um acesso parcial ao mercado interno de serviços, embora não incluam a livre circulação de pessoas. Os países exportadores devem respeitar as regras europeias quando exportem para a UE, mas como Estados terceiros não têm qualquer influência sobre a adoção das mesmas.
- Prevalecer-se das regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) para continuar a negociar com a UE. Enquanto membro da OMC, o Reino Unido poderá negociar acordos comerciais com outros membros, incluindo a UE. No entanto, enquanto tais acordos não entrassem em vigor o Reino Unido deverá praticar tarifas e condições de tratamento em termos de igualdade a todos os membros da OMC (ao abrigo do princípio da “Nação Mais Favorecida”). As exportações do Reino Unido para a UE ficariam ainda sujeitas às tarifas da pauta aduaneira comum.
O futuro: o que sabemos
Durante vários meses após o referendo as pretensões do Governo britânico permaneceram rodeadas de algum mistério. Os membros do Conselho Europeu (sem o Reino Unido) e o Presidente da Comissão exprimiram o desejo de que o “Reino Unido seja um parceiro próximo da UE”, advertindo todavia que “qualquer acordo que for celebrado com o Reino Unido terá de basear-se num equilíbrio entre direitos e obrigações”, e em particular que “[o] acesso ao mercado único exige a aceitação das quatro liberdades” (livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais)10.
No passado dia 17 de janeiro a Primeira-Ministra britânica proferiu um discurso no qual pretendeu clarificar as pretensões do Reino Unido quanto aos termos da saída da UE, tendo definido um conjunto de princípios que, embora gerais, são em todo o caso bem-vindos por permitirem conhecer com maior clareza o que poderá ser a posição britânica nas negociações que se avizinham11.
Em particular, o Governo britânico reconhece que não terá acesso integral ao mercado interno após sair da UE, pois considera essencial:
(i) retomar o controlo pleno sobre as suas fronteiras, o que implica a possibilidade de restringir a entrada e permanência dos cidadãos da UE no seu território, e
(ii) “assumir controlo sobre as leis do Reino Unido”, ou seja, afastar a competência dos tribunais da União Europeia para interpretar as leis e regulamentos que se aplicam no Reino Unido.
Por outro lado, o Reino Unido pretende negociar um “acordo ambicioso de comércio livre” com a UE, mantendo liberdade de negociação com outros países terceiros. Isto significa que a Grã-Bretanha equaciona fixar as suas próprias tarifas aduaneiras no âmbito da OMC, o que será incompatível com a sua permanência (pelo menos em termos plenos) na União Aduaneira europeia.
A Primeira-Ministra britânica reconheceu ainda, como acima vimos, a necessidade de um período transitório para implementar de forma faseada a saída do Reino Unido da UE, após março de 2019, com vista a permitir a preparação dos agentes económicos e dos cidadãos, britânicos e da UE, para as alterações significativas que se produzirão no quadro legislativo e regulatório aplicável.
À luz do pensamento do Governo britânico, parecem excluídas as hipóteses de o Reino Unido aderir ao EEE, tal como a Noruega, ou permanecer na EFTA e celebrar um conjunto de acordos bilaterais para aceder ao mercado interno europeu, como a Suíça, pois em ambos os casos estes países terceiros aceitam a livre circulação dos cidadãos da União. É possível que o Reino Unido tente negociar e celebrar um acordo de comércio livre bilateral com a UE (a exemplo do Canadá). Contudo, tendo em conta a complexidade das negociações de saída, e as tensões que estas poderão originar entre o Reino Unido e alguns dos 27 Estados-Membros que permanecerão na União Europeia, levam a que um cenário provável, pelo menos no curto prazo, possa ser o de o Reino Unido ser forçado a negociar com a UE ao abrigo das regras gerais da OMC.
Independentemente dos termos concretos da futura relação entre a UE e o Reino Unido que venham a ser negociados, o direito da UE continuará a produzir certos efeitos no Reino Unido. Por exemplo, as empresas britânicas que desenvolvam atividade na UE continuarão a estar sujeitas às normas europeias sobre especificações técnicas (standards) ou em matéria de concorrência. Assim, mesmo após a saída da UE, em diversas áreas a autonomia do legislador britânico será fortemente condicionada pela necessidade de assegurar a continuidade da relação próxima da economia britânica com as empresas e investidores europeus.
No entanto, as opções que serão tomadas nas negociações a iniciar em breve terão um impacto profundo nas relações dos cidadãos e empresas europeus com o Reino Unido e o mercado britânico, em múltiplas áreas, desde os serviços financeiros às regras sobre insolvência, propriedade intelectual, relações laborais ou ambiente. É pois importante continuar a seguir com atenção os próximos desenvolvimentos.
À luz do pensamento do Governo britânico, parecem excluídas as hipóteses de o Reino Unido aderir ao EEE, tal como a Noruega, ou permanecer na EFTA e celebrar um conjunto de acordos bilaterais para aceder ao mercado interno europeu, como a Suíça, pois em ambos os casos estes países terceiros aceitam a livre circulação dos cidadãos da União.
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1 R(Miller) v Secretary of State for Exiting the European Union, [2016] EWHC 2768 (Admin) e [2017] UKSC 5, disponível em <https://www.judiciary.gov.uk/judgments/r-miller-v-secretary-of-state-for-exiting-the-european-union/>.
2 European Union (Notification of Withdrawal) Bill 2016-17, apresentada a 26 de janeiro de 2017.
3 BBC, 2 October 2016, Brexit: Theresa May to trigger Article 50 by end of March, <http://www.bbc.com/ news/uk-politics-37532364>.
4 Declaração da “Reunião informal a 27”, Bruxelas, 29 de junho de 2016, disponível em <http://www. consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2016/06/29-27ms-informal-meeting-statement/>, n.° 3.
5 O grupo “Far Deal for Expats” anunciou a intenção de atacar esta “decisão presidencial” nos tribunais da União (BBC, “Brexit: British expats sue EUs’ Juncker over talks”, 7 de outubro de 2016, <http://www.bbc. com/news/world-europe-37586587>).
6 The process for withdrawing from the European Union, de 29 de fevereiro de 2016, disponível em <https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/504216/The_process_for_ withdrawing_from_the_EU_print_ready.pdf>, parágrafo 3.11.
7 Theresa May, “The governments’ negotiation objectives for exiting the EU”, discurso de 17 janeiro de 2017, Lancaster House, Londres, disponível em <https://www.gov.uk/government/speeches/the-governments-negotiating-objectives-for-exiting-the-eu-pm speech>.
8 O EEE, que inclui os 28 Estados-Membros da União e três dos quatro Estados da EFTA (Islândia, Liechtenstein e Noruega) prevê a aplicação da legislação da UE em diversos domínios, incluindo as quatro liberdades, embora não abranja políticas como a agricultura, emprego e assuntos sociais ou justiça e assuntos internos
9 A UE e o Canadá assinaram a 30 de outubro de 2016 o Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA), que terá ainda que ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais antes de entrar em vigor (<http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ceta/ceta-explained/>). As negociações com Singapura foram concluídas a 17 de outubro de 2014 e o acordo rubricado aguarda ainda a aprovação da Comissão Europeia, bem como o acordo do Conselho e a ratificação do Parlamento Europeu.
10 Cf. a Declaração da “Reunião informal a 27”, Bruxelas, 29 de junho de 2016, cit., n.º 4.
11 Cf. a nota 7.5