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01.09.2011

O Memorando de Entendimento do Programa de Assistência Financeira: Reformas Estruturais no Direito da Concorrência e em Sectores Regulados

Introdução

O reforço da competitividade estrutural da economia portuguesa é um dos principais objectivos do Memorando de Entendimento assinado a 17 de Maio entre o Governo Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. O Memorando, que definiu as bases do programa de ajustamento económico e financeiro que irá permitir a Portugal beneficiar de assistência financeira até 78 mil milhões de euros, foi recentemente revisto no passado dia 1 de Setembro, na sequência da primeira avaliação trimestral realizada pelas autoridades internacionais.

Várias das reformas propostas respeitam às regras de concorrência ou são por estas inspiradas, incluindo:

  • a revisão da Lei da Concorrência;
  • o reforço da independência e dos recursos da Autoridade da Concorrência e das autoridades reguladoras sectoriais;
  • a criação de tribunais especializados em matéria de concorrência e propriedade intelectual, no âmbito de uma ambiciosa reforma do sistema judicial;
  • um vasto conjunto de medidas para reforçar a concorrência em sectores regulados, tais como a energia, as comunicações, os serviços postais, os serviços de saúde, os transportes e as profissões reguladas.


Revisão da lei da concorrência

O Governo pretende adoptar medidas “para melhorar a celeridade e a eficácia da aplicação das regras da concorrência”, tendo-se comprometido a apresentar ao Parlamento até Dezembro de 2011 uma proposta de lei de revisão da Lei da Concorrência (Lei 18/2003).


Regras Processuais

O principal objectivo da reforma é tornar a Lei da Concorrência “o mais autónoma possível” das regras de processo penal. A aplicação subsidiária das regras de processo penal aos processos de contra-ordenação por violação da Lei da Concorrência tem suscitado múltiplas dúvidas, e várias decisões da Autoridade foram já anuladas em sede de recurso judicial por razões processuais.

O Governo também pretende “garantir mais clareza e segurança jurídica” na aplicação das regras do procedimento administrativo ao controlo das concentrações, embora a aplicação subsidiária das referidas regras aos procedimentos de apreciação de concentrações não tenha até à data suscitado controvérsia de maior.


A abertura de inquéritos

O Governo propõe “racionalizar as condições que determinam a abertura de investigações”, permitindo à Autoridade da Concorrência efectuar uma avaliação sobre a relevância das queixas recebidas. Presentemente a Autoridade está obrigada, nos termos da lei, a abrir um inquérito sempre que tenha conhecimento de eventuais práticas proibidas.


Controlo das concentrações

De acordo com o Memorando, a revisão da lei deve proceder a um maior alinhamento entre o regime nacional sobre concentrações e o Regulamento das Concentrações Comunitárias (139/2004), em particular no que respeita aos critérios de notificação. O direito português prevê dois critérios alternativos, um relativo ao volume de negócios e outro relativo às quotas de mercado. Recentemente tem havido quem defenda a eliminação ou a revisão do critério da quota de mercado, embora tal critério se mantenha em vários direitos nacionais, como o espanhol ou o do Reino Unido.

Outra alteração provável na área do controlo das concentrações diz respeito ao teste substantivo na apreciação das concentrações. O teste de “domínio de mercado”, nos termos do qual uma concentração é proibida se criar ou reforçar uma posição dominante que entrave a concorrência efectiva, será provavelmente substituído pelo teste do “entrave significativo a uma concorrência efectiva”, adoptado desde 2004 no direito europeu das concentrações.


Recursos Judiciais

O Memorando prevê que o Governo avalie o processo de recursos e proceda aos “ajustamentos” necessários para aumentar a equidade e a eficiência. A recente criação do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão poderá melhorar o funcionamento do sistema de recursos no direito da concorrência.


Autoridade da Concorrência e reguladores sectoriais

O Governo compromete-se a tomar medidas para garantir que as autoridades reguladoras nacionais dispõem da independência e dos recursos necessários para exercer as suas responsabilidades. Em particular, até Março de 2012 deverá ser elaborado um relatório independente, que analisará as práticas de nomeação, as responsabilidades, a independência e os recursos de cada autoridade face às melhores práticas internacionais. Com base no relatório, o Governo apresentará até Junho de 2012 ao Parlamento uma proposta de lei para implementar as melhores práticas identificadas e reforçar a independência dos reguladores.

Uma questão central neste contexto é o processo de designação dos conselhos das autoridades reguladoras, que presentemente são nomeados pelo Governo sem qualquer fiscalização externa. Têm sido conhecidas várias propostas para aumentar a independência das agências reguladoras, incluindo a transferência dos poderes de nomeação para o Presidente da República, eventualmente acompanhada de poderes de confirmação pela Assembleia da República.


O novo tribunal da concorrência

O Memorando prevê um ambicioso conjunto de reformas para melhorar o funcionamento do sistema judicial. No contexto destas reformas, a Lei n.º 46/2011 criou recentemente o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão e o novo Tribunal da Propriedade Intelectual. De acordo com o Memorando, os dois novos tribunais de competência especializada deverão estar operacionais até Março de 2012.

Embora a criação do novo tribunal da concorrência seja bem-vinda, permanece ainda alguma incerteza quanto ao seu funcionamento futuro. O novo tribunal apreciará recursos das decisões de todas as autoridades reguladoras independentes portuguesas, em matéria de regulação da banca, seguros, mercados de capitais, comunicações electrónicas e comunicação social, o que poderá pôr em causa o tratamento especializado dos processos de concorrência. Uma forma de assegurar o cumprimento do Memorando poderá passar pela criação de uma secção especializada no novo tribunal dedicada exclusivamente aos processos de concorrência.


Reforço da concorrência nos setores regulados

O Governo compromete-se a assegurar condições concorrenciais equitativas, minimizar comportamentos abusivos e reforçar a concorrência nos principais sectores regulados da economia, através das seguintes medidas:


Energia

O Governo pretende prosseguir a promoção da concorrência nos mercados da energia e reforçar a integração dos mercados ibéricos da electricidade e do gás (MIBEL e MIBGAS). A liberalização total do sector da energia será antecipada através da extinção das tarifas reguladas até 1 de Janeiro de 2013. Os principais princípios deste processo foram já aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.° 34/2011, e a legislação para a sua implementação deverá ser aprovada até ao fim do ano.

A transposição das directivas 2009/72/CE e 2009/73/CE, que compõem o chamado “Terceiro Pacote Energético”, deverá estar finalizada até Março de 2012, na sequência das recentes alterações às leis de bases da electricidade e do gás natural pelos Decretos-lei n.°s 77/2011 e 78/2011. O Governo irá ainda avaliar a eficácia dos esquemas de apoio à co-geração e às energias renováveis (incluindo a redução dos incentivos financeiros à produção), bem como os montantes pagos no contexto da transição para o mercado liberalizado aos produtores de electricidade vinculados no passado ao sistema de serviço público.


Comunicações

O Memorando visa o aumento da concorrência nos mercados das comunicações electrónicas através da redução de barreiras à entrada. Para além da recente transposição da Directiva da UE “Better Regulation” (2009/136/CE) através da Lei n.° 51/2011, serão tomadas as seguintes medidas:

  • organização de “leilão de espectro” para a atribuição de radiofrequências adicionais para acesso a banda larga sem fios, no respeito pelos princípios do direito da União, até ao fim de Dezembro de 2011;
  • redução das tarifas de terminação móvel (Setembro de 2011);
  • redução das restrições à mobilidade dos consumidores, de acordo com as recomendações da Autoridade da Concorrência (Setembro de 2011), avaliação das barreiras à entrada e adopção de medidas correctivas (Março de 2012); e
  • enegociação do contrato de concessão do serviço universal e lançamento de um novo concurso para a designação de prestadores do serviço universal (Dezembro de 2011).


Saúde

O Governo propõe adoptar medidas para aumentar a concorrência entre prestadores privados (até Dezembro de 2011), e compromete¬-se a avaliar o cumprimento das regras europeias de concorrência na prestação de serviços de cuidados de saúde (até Março de 2012).


Serviços Postais

O Governo irá continuar a liberalização do sector postal através da transposição da Terceira Directiva Postal (2008/06/CE), e irá assegurar que os poderes e a independência da autoridade reguladora são apropriados, tendo em conta o aumento das suas funções em matéria de controlo de preços e custos (Setembro de 2011).


Profissões regulamentadas

O Governo compromete-se a:

  • Rever e reduzir o número de profissões reguladas, com vista à implementação integral da Directiva “Serviços” (2006/123/CE);
  • Eliminar restrições à utilização de publicidade em profissões reguladas;
  • Melhorar o enquadramento jurídico para o reconhecimento de qualificações profissionais; 
  • Reduzir o número de requisitos formais a que estão sujeitos os prestadores de serviços transfronteiriços em Portugal.


Direitos especiais do estado em empresas privatizadas

O Governo já cumpriu o compromisso de revogar as disposições que conferem ao Estado direitos especiais sobre o processo de tomada de decisões da EDP, da GALP e da PT, através da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 90/2011 e da eliminação, pelas assembleias-gerais destas sociedades, dos direitos especiais que ainda permaneciam nos respectivos estatutos.

O Governo também se comprometeu a assegurar que as entidades públicas não celebram, enquanto accionistas, acordos que influenciem a gestão ou o controlo das empresas em causa, ou que restrinjam a livre circulação de capitais. (A participação do Estado, através da CGD, no acordo de accionistas relativo à GALP, cessará com a privatização total desta empresa até Dezembro de 2011). No que respeita às operações de privatização projectadas, o Governo compromete-se ainda a não criar ou permitir a criação de limites à detenção do capital social pelos accionistas que vão para além da própria operação de privatização


Comentário

O ambicioso e vasto programa de reformas estruturais reflectido no Memorando está sujeito a um apertado calendário de execução, sendo objecto de acompanhamento pelas autoridades internacionais através de relatórios de execução trimestrais. O sentido do primeiro relatório, anunciado no passado dia 12 de Agosto, foi globalmente positivo.

O Governo deverá apresentar uma proposta de revisão da Lei da Concorrência nas próximas semanas. É provável que esta proposta seja baseada nos compromissos constantes do Memorando, bem como nas propostas que terão sido apresentadas ao Governo pela Autoridade da Concorrência (que não foram tornadas públicas).

Neste contexto, o Círculo de Advogados Portugueses de Direito da Concorrência, associação que reúne especialistas na área do direito da concorrência e que é presidida pelo sócio da MLGTS Carlos Botelho Moniz, apresentou recentemente à Assembleia da República e ao Governo um documento de reflexão com propostas de revisão e alteração da Lei da Concorrência.

As sugestões formuladas centram-se em particular nas áreas seguintes:

  • clarificação das regras processuais, designadamente em matéria de segredo de justiça e acesso ao processo na Autoridade, conteúdo da nota de ilicitude, prazos para o exercício dos direitos de defesa, direitos dos denunciantes e recursos;
  • clarificação das regras substantivas sobre condutas unilaterais;
  • poderes para a Autoridade aplicar coimas por violação do direito europeu da concorrência e para adoptar decisões de arquivamento com compromissos;
  • critérios detalhados sobre a determinação da medida das coimas;
  • introdução de procedimento de transacção (settlement) em casos de cartéis;
  • medidas para incentivar as acções de indemnização nos tribunais cíveis por violação do direito da concorrência.

Tendo em conta o âmbito das alterações projectadas à Lei da Concorrência, espera-se que a proposta do Governo seja objecto de uma ampla consulta pública antes da sua apresentação ao Parlamento. O Ministro da Economia comprometeu-se publicamente a fazê-lo.

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