31.12.2015
O Tribunal de Justiça confirma que empresas de consultadoria que facilitem condutas anticoncorrenciais podem ser sancionadas ao abrigo do artigo 101.º TFUE
O Tribunal de Justiça da União Europeia (Tribunal de Justiça), por acórdão de 22 de outubro de 2015, no processo C-194/14 P, AC-Treuhand c. Comissão1, negou provimento ao recurso interposto pela empresa AC-Treuhand AG (AC-Treuhand) do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia (Tribunal Geral), de 6 de fevereiro de 2014, no processo T-27/10, no qual este último indeferiu o recurso de anulação da Decisão da Comissão C(2009) 8682 final, de 11 de novembro de 2009, referente a um procedimento ao abrigo do artigo 101.º TFUE2 ou, subsidiariamente, a redução das coimas aplicadas.
A AC-Treuhand, cuja sede situa-se em Zurique, é uma empresa de consultoria que presta serviços a associações nacionais e internacionais e a grupos de interesse, incluindo a gestão e a administração de associações profissionais suíças e internacionais, bem como de federações e organizações sem fins lucrativos, a recolha, o tratamento e a exploração de dados de mercado, a apresentação das estatísticas de mercado e o controlo, nas instalações dos participantes, dos valores reportados.
A Comissão considerou, na sua Decisão, que um determinado número de empresas tinha infringido o artigo 101.º TFUE ao participar em dois conjuntos de acordos e práticas concertadas anticoncorrenciais que abrangem o território da UE, respeitantes (i) ao setor dos estabilizadores de estanho, e (ii) ao setor do óleo de soja epoxidada e dos ésteres.
A AC-Treuhand, por sua vez, foi considerada responsável pela participação, no contexto dos dois setores em apreço, num conjunto de acordos e de práticas concertadas que consistiram na fixação de preços, repartição de clientes e de mercados através de quotas de vendas, e na troca de informações comerciais sensíveis, em especial sobre clientes, produção e vendas. A imputação de responsabilidade à AC-Treuhand pela Comissão teve em conta o papel essencial e semelhante nas duas infrações em apreço desempenhado pela empresa, a qual (i) organizou diversas reuniões e nas quais participou ativamente, (ii) recolheu e forneceu aos produtores envolvidos dados sobre as vendas nos mercados em causa, e (iii) propôs-se a atuar enquanto moderadora em caso de tensão entre os referidos produtores, incentivando-os a chegarem a compromissos, todos estes serviços em troca de remuneração. A Comissão aplicou à empresa duas coimas no montante de 174.000 EUR, por infração.
Neste contexto, a AC-Treuhand interpôs recurso junto do Tribunal Geral, pugnando pela anulação da Decisão ou pela redução das coimas aplicadas, tendo invocado para o efeito, inter alia, o não cumprimento dos critérios do artigo 101.º TFUE e a violação do princípio da legalidade das infrações e das penas, bem como o não cumprimento da obrigação da Comissão em aplicar, face às especificidade do caso, uma sanção simbólica, e a violação das Orientações para o cálculo das coimas de 20063. O Tribunal Geral negou provimento ao recurso na sua totalidade, tendo a AC-Treuhand recorrido de tal decisão para o Tribunal de Justiça, alegando para o efeito que o tribunal a quo tinha violado: (i) os requisitos de aplicação do artigo 101.º TFUE e o artigo 49.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia4; (ii) os princípios da legalidade das infrações e das penas, da igualdade de tratamento e o dever de fundamentação; (iii) o artigo 23.º, n.os 2 e 3, do Regulamento n.º 1/2003, de 16 de dezembro de 20025, as Orientações 2006 e os princípios da segurança jurídica, da igualdade de tratamento e da proporcionalidade6; e (iv) o artigo 261.º TFUE, o princípio da proteção jurisdicional efetiva e os artigos 23.º, n.º 3, e 31.º, do Regulamento n.º 1/2003, de 16 de dezembro de 2002.
O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso interposto pela AC-Treuhand. Com efeito, no que diz respeito ao primeiro fundamento de recurso, o tribunal considerou que “a redação [do artigo 101.º TFUE] em nada indica que a proibição nel[e] prevista visa unicamente as partes nesses acordos ou nessas práticas concertadas que exercem a sua atividade nos mercados afetados pelos mesmos”7 e que modos passivos de participação na infração, como no caso em apreço, “se traduzem numa cumplicidade que é de natureza a fazer a empresa incorrer em responsabilidade no âmbito do artigo [101.º, n.º 1 TFUE], uma vez que a aprovação tácita de uma iniciativa ilícita, sem se distanciar publicamente do seu conteúdo ou sem a denunciar às entidades administrativas, tem por efeito incentivar a continuação da infração e compromete a sua descoberta”8.
O tribunal observou, também, que era razoavelmente expectável que a conduta da empresa pudesse ser declarada incompatível com as regras de concorrência do direito da União, atendendo, designadamente, ao amplo alcance dos conceitos de “acordo” e de “prática concertada” que resultam do acquis do Tribunal de Justiça.
Quanto ao segundo fundamento de recurso, o tribunal considerou-o inadmissível, pelo facto de o vício imputado à decisão não ter sido suscitado junto do tribunal a quo. Em relação ao terceiro fundamento de recurso, o Tribunal de Justiça decidiu que o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao julgar que a Comissão se podia afastar da metodologia de cálculo das coimas indicada nas Orientações 2006, tendo em conta que a determinação das coimas com base nos honorários recebidos pela AC-Treuhand como contrapartida pelos serviços prestados aos participantes no cartel não refletia de modo adequado a importância económica das infrações em causa e o peso relativo da empresa nas mesmas.
Por último, o Tribunal de Justiça também julgou improcedente o quarto fundamento do recurso, por ter concluído que a ACTreuhand não alegou perante o tribunal a quo os fundamentos referentes à violação dos princípios da legalidade das infrações e das penas, da igualdade de tratamento e da proporcionalidade, e por considerar que aquele examinou todos os argumentos avançados pela empresa em relação à determinação das coimas aplicadas.
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1 Acórdão acedido e disponível em http://curia.europa.eu/.
2 Processo COMP/38589 – Estabilizadores térmicos, acedida e disponível em http://ec.europa.eu/competition/antitrust/cases/dec_docs/38589/38589_4669_7.pdf.
3 Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.º 2, alínea a), do artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, JO C 210, de 1 de setembro de 2006, p. 2 (Orientações 2006).
4 A AC-Treuhand alegou que o Tribunal Geral cometeu um erro na aplicação do direito ao interpretar extensivamente o artigo 101.º TFUE em violação do princípio da legalidade (nullem crimen sine lege e nulla poena sine lege) previsto no artigo 49.º, n.º 1, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, de tal forma que os critérios da certeza e da previsibilidade próprios do Estado de Direito subjacentes ao artigo 101.º TFUE deixaram de estar reunidos no presente caso.
5 JO L 1, de 4 de janeiro de 2003, p. 1.
6 A este respeito, a AC-Treuhand alegou inter alia que as coimas que lhe foram aplicadas deviam ter sido fixadas com base nos honorários cobrados pelas prestações de serviços que deram origem às infrações, de acordo com a metodologia das Orientações 2006, e não com base em montantes fixos. Como tal, no entender da empresa o Tribunal Geral julgou, erradamente, este argumento improcedente e considerou o montante das coimas apropriado.
7 § 27.
8 § 31.