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01.04.2016

O Tribunal de Justiça limita os poderes de investigação da Comissão

O Tribunal de Justiça limita os poderes de investigação da Comissão em processos por violação ao direito da concorrência, anulando pedidos de informação excessivos e insuficientemente fundamentados.

Introdução

A 10 de março de 2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu quatro decisões históricas em casos paralelos (“Decisões”)1, ao determinar que o Tribunal Geral (“TG”) tinha interpretado erroneamente os Artigos 296.o TFUE e 18.o n.o3 do Regulamento de Implementação N.o1/2003 (“RI”)2 por ter considerado que os pedidos formais de informação em causa (“PIs em causa”) emitidos pela Comissão Europeia (“Comissão”) numa investigação a um cartel continham uma fundamentação adequada. O TJUE reverteu as decisões do TG e anulou os PIs em causa, impondo pela primeira vez limites legais claros aos poderes da Comissão para investigar presumíveis infrações ao direito da concorrência através de PIs.


Contexto

Nos termos do Artigo 18.o n.o 3 do RI, aquando da investigação de presumíveis infrações ao direito da concorrência, a Comissão pode, através de uma decisão, requerer às empresas que estas prestem toda a informação necessária à investigação. Estes chamados PIs formais (por oposição aos PIs simples, de acordo com o Artigo 18.o, n.o 2 do RI) obrigam os seus destinatários a prestar informação completa, correta e precisa dentro do limite temporal estabelecido pela Comissão, sob pena de serem sancionados com sanções pecuniárias compulsórias (que podem ir até 5% do volume de negócios médio diário no exercício anterior por cada dia de incumprimento) e/ou multas (que podem ir até 1% do volume de negócios total no exercício anterior) (Artigos 23.o, n.o 1, alínea b), 24.o, n.o 1, alínea d) do RI).

O presente caso envolve uma investigação a um cartel (AT.39520 – Cimento e produtos relacionados) a que a Comissão tinha dado início ex officio, i.e. por sua própria iniciativa, sem ter sido informada de presumíveis práticas anti-concorrenciais por um requerente de pedido de clemência. Em 2009 e 2010 a Comissão levou a cabo inspeções (dawn-raids), emitiu alguns PIs (simples) e, em Dezembro de 2010, abriu uma investigação formal (aprofundada) contra determinados fabricantes de cimento (“decisão de abertura”).

Em março de 2011, a Comissão adotou os PIs contestados através de uma decisão nos termos do Artigo 18.o, n.o3 do RI, na qual solicitava a estes fabricantes que respondessem a um questionário extremamente extenso, compreendendo entre 78 e 94 páginas e 11 grupos de numerosas questões, o que implicava a submissão de uma vasta quantidade de informação detalhada e muito diversa, tal como a quantidade e custos das emissões CO2 das centrais de produção, estatísticas relativas a licenças das infraestruturas, números de IVA dos seus clientes, modos transporte e distância percorrida pelos carregamentos dos bens vendidos, o tipo de embalagem utilizada e custos de transporte e de seguro desses carregamentos, a tecnologia e combustível utilizados nas infraestruturas de produção e os custos da sua reparação e manutenção.

A Comissão informou nesses PIs que estava a investigar suspeitas de violação do Artigo 101 TFUE que descreveu como “restrições aos fluxos comerciais no Espaço Económico Europeu (EEE), incluindo restrições às importações no EEE provenientes de países fora do EEE, repartição do mercado, coordenação dos preços e práticas anti-concorrenciais relacionadas no mercado do cimento e mercados do produto relacionados” e explicou que “[o questionário] procura obter informação adicional necessária para avaliar a compatibilidade das práticas sob investigação, de forma a ter um conhecimento total dos factos e do seu exato contexto económico”

As reclamações por parte dos destinatários dos PIs de que estes se encontravam insuficientemente fundamentados e que não lhes permitiam saber quais as infrações concretas de que eram suspeitos foram afastadas pelo TG em primeira instância. No entanto, em sede de recurso, o TJUE concluiu que o TG tinha interpretado erroneamente os Artigos 296.o TFUE e 18.o, n.o 3 do RI ao concluir que a fundamentação dos PIs era adequada. Deste modo, o TJUE anulou as decisões do TG, bem como os PIs contestados.


Decisões do TJUE

O TJUE afirmou que os elementos necessários à fundamentação dos PIs, tal como são exigidos pelo Artigo 296.o TFUE, se encontravam definidos no Artigo 18.o do RI. O Artigo 18.o, n.o 1 do RI obrigava a Comissão a requerer apenas a divulgação de informação que fosse necessária à investigação de presumíveis infrações ao direito da concorrência. O Artigo 18.o, n.o 3 do RI obrigava a Comissão a revelar o fim do PI, o que se relacionava com a obrigação de a Comissão indicar o objeto da investigação e assim identificar as presumíveis infrações ao direito da concorrência. O TJUE relembrou que, de forma a permitir aos Tribunais e aos destinatários avaliar se a informação solicitada é de facto necessária para a investigação, o PI tem de divulgar, de forma clara e inequívoca, as presumíveis infrações ao direito da concorrência.3

Avaliando os PIs contestados à luz destes princípios, o TJUE considerou que a descrição da presumível infracção era excessivamente sucinta, vaga e genérica, especialmente quando comparada com a vasta quantidade, detalhe e diversidade de informação solicitada. O TJUE concluiu que esta descrição não tornava possível determinar com suficiente precisão se os produtos com que a investigação está relacionada ou as presumíveis infrações justificavam a adoção dos PIs contestados.4

O TJUE admitiu que os PIs contestados tinham de ser avaliados não só à luz da sua redação, mas também da sua natureza e contexto em que foram emitidos, incluindo a decisão de abertura. Porém, o TJUE considerou a descrição das presumíveis infrações na decisão de abertura similarmente sucinta, vaga e genérica. Além disso, ao mesmo tempo que reconheceu a natureza investigativa dos PIs que, pela sua própria natureza, são adotados quando a Comissão não tem ainda informação precisa e completa acerca da presumível infracção, o TJUE sublinhou que os PIs contestados foram adotados numa fase avançada do procedimento – mais de dois anos após as primeiras inspeções, seguidos da receção de respostas das empresas a alguns PIs e após a abertura de um procedimento formal – altura em que a Comissão deveria já ter informação que lhe permitisse descrever a presumível infracção de uma forma mais precisa.5


Comentário

O TJUE impôs pela primeira vez limites legais claros aos poderes da Comissão de investigar presumíveis infrações ao direito da concorrência através de PIs formais. Ao exigir uma divulgação clara e inequívoca da presumível infração, incluindo o seu âmbito geográfico e os produtos em causa, o TJUE restringiu os requisitos de fundamentação dos Pis formais, embora o exato grau desses requisitos possa depender da fase do procedimento em que os PIs sejam emitidos.

As Decisões tornam claro que os poderes conferidos à Comissão no Artigo 18.º, n.º 3 do RI não lhe permitem enveredar por “expedições de pesca”, i.e. solicitar informação numa base especulativa sem ter quaisquer indícios concretos da prática de uma infracção6, ou confiar que os PIs se tornem em amontoados de informação desproporcionados e provavelmente irrelevantes. Estas Decisões também fortalecem a capacidade dos requeridos e dos seus mandatários avaliarem o âmbito do seu dever de prestar a informação solicitada (e do risco correlativo de imposição de elevadas sanções pecuniárias em caso de violação desse dever), os seus direitos de defesa (ex.: a recusa em prestar informação solicitada e potencialmente autoincriminatória que não seja necessária para a investigação da alegada prática) e, acima de tudo, elaborar uma estratégia de defesa apropriada.

Ainda que o PI no presente caso seja certamente um exemplo extremo, a sua anulação demonstra que a impugnação de um PI junto dos Tribunais pode ser uma opção que vale a pena ponderar, especialmente porque a informação prestada em resposta a um PI que seja subsequentemente anulado pelos Tribunais deve em princípio ser considerada como um meio de prova inadmissível de uma violação ao direito da concorrência.7 No presente caso, contudo, esta questão não se coloca, dado que a Comissão não encontrou suficientes indícios que suportassem a sua suspeita inicial de existência de um cartel, tendo encerrado a investigação em Julho de 2015 sem que tenha identificado uma infracção ao direito da concorrência.

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1 TJUE, Decisões de 10 de Março de 2016, nos Casos C-247/14 P, HeidelbergCement/Comissão C-248/14 P, Schwenk Zement/Comissão, C-267/14 P, Buzzi Unicem/Comissão e C-268/14 P, Italmobiliare/ Comissão e as Opiniões do Advogado-Geral Wahl de 15 de Outubro de 2015.
2 Regulamento do Conselho (CE) N.o 1/2003 de 16 de Dezembro de 2002 relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado OJ 2003 L1/1.
3 Ex.: Caso C-247/14 P, HeidelbergCement/Comissão, p.17-27.
4 Ex.: Caso C-247/14 P, HeidelbergCement/Comissão, p.27-31.
5 Ex.: Caso C-247/14 P, HeidelbergCement/Comissão, p.32-39.
6 De facto, o âmbito abrangente e a natureza da informação solicitada nas decisões contestadas parece ajudar a Comissão a traçar as receitas totais e custos estruturais dos requeridos, analisá-las através de métodos econométricos (comparando-os com os de outras empresas da indústria do cimento) e a detetar possíveis infrações com base no resultado desta análise.
7 Este entendimento encontra-se estabelecido na jurisprudência dos Tribunais no que diz respeito à utilização de informação recolhida pela Comissão no decurso de uma inspeção que tenha sido subsequentemente anulada. Ver, por exemplo, a Decisão do TJUE de 22 de Outubro de 2002, C-94/00, Roquette Frères, p.49 e a jurisprudência aí citada.

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