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26.06.2017

O âmbito de proteção da informação constante dos requerimentos de clemência – o acórdão do TJUE no processo C-162/15p, Evonik Degussa

Antecedentes

Em 2006, a Comissão Europeia (“Comissão”) condenou a Evonik Degussa GmbH (“Degussa” ou “Recorrente”) e 16 empresas concorrentes pela participação, durante cerca de seis anos, num cartel no mercado do peróxido de hidrogénio e do perborato de sódio. A Degussa contribuiu ativamente para a deteção, investigação e prova do ilícito pela Comissão, pois foi a primeira empresa a fornecer à Comissão informação acerca do funcionamento do cartel, ao abrigo do regime de clemência então em vigor. Em troca dessa colaboração, a Degussa ficou isenta da aplicação de coima.

Após a publicação, em 2007, de uma primeira versão não confidencial da decisão final condenatória (“decisão PHP”), a Comissão decidiu, em 2011, divulgar no seu site uma nova versão não confidencial, mais detalhada do que a primeira.

A Degussa opôs-se à publicação dessa nova versão, alegando que a mesma continha informações confidenciais e que a sua publicação violaria a confiança legítima de que as informações voluntariamente comunicadas à Comissão no âmbito da clemência não seriam divulgadas e o princípio da igualdade de tratamento face a outros destinatários da decisão PHP (que não haviam cooperado com a Comissão), para além de poder prejudicar as atividades de inquérito da Comissão.

A Comissão aceitou excluir da nova versão as informações que permitissem identificar a fonte das informações comunicadas no âmbito da clemência, tal como os nomes de colaboradores da Degussa, mas considerou que não se justificava conceder o benefício da confidencialidade às outras informações, cujo tratamento confidencial a recorrente tinha requerido (“informações controvertidas”).

Inconformada, a Degussa solicitou ao Auditor – órgão que tem como missão assegurar o exercício efetivo dos direitos procedimentais na fase administrativa do processo (perante a Comissão) – que excluísse da versão alargada da decisão PHP todas as informações fornecidas à Comissão, ao abrigo da comunicação relativa à clemência de 2002. No entanto, o Auditor indeferiu o pedido por entender que a Degussa não havia demonstrado um prejuízo grave resultante da publicação. Por outro lado, o Auditor considerou-se incompetente para apreciar os argumentos relacionados com a violação do princípio da proteção da confiança legítima e da igualdade de tratamento.

A Degussa recorreu desta decisão de indeferimento para o Tribunal Geral e, posteriormente (tendo-lhe sido negado provimento ao recurso, pelo Tribunal Geral) para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).


As informações controvertidas

Tratava-se, no essencial, de informações que permitiriam detalhar os elementos constitutivos da infração e da participação da recorrente na mesma – mediante explicitação dos contactos ou acordos colusórios em que a recorrente participou, com referência a nomes de produtos abrangidos, preços praticados e objetivos prosseguidos pelos participantes em termos de preços e repartição das quotas de mercado – pondo em foco, de forma sensivelmente mais detalhada, o comportamento transgressor da Degussa. Estas informações facilitariam às eventuais vítimas do ilícito em causa a demonstração do dano causado pela Degussa bem como a demonstração do nexo causal entre a infração e o dano alegado.


O Acórdão do TJUE

O TJUE começou por apreciar a questão da competência do Auditor e considerou – contrariamente ao entendimento sufragado pelo próprio Auditor e pelo Tribunal Geral – que os motivos suscetíveis de restringir a divulgação, ao público, de informações comunicadas para obter clemência, não se limitam à invocação de regras que têm esse fim específico, devendo o Auditor examinar qualquer objeção baseada em regras/ /princípios do direito da União invocados pelo interessado para requerer a proteção de confidencialidade das informações em causa. Para o TJUE, uma interpretação distinta seria contrária ao objetivo do mandato do Auditor – garantir o exercício efetivo dos direitos procedimentais – e limitaria consideravelmente a possibilidade de apresentação de objeções à divulgação de informação, objeções essas que cabe ao Auditor apreciar. O acórdão recorrido foi pois anulado, com base neste fundamento.

Já quanto aos demais fundamentos invocados pela Recorrente para obstar à publicação das informações controvertidas, os mesmos foram rejeitados pelo TJUE, em particular pelos seguintes motivos:

  • As informações controvertidas datavam de há mais de cinco anos e estavam, por isso, abrangidas pela presunção (ilidível) de perda do seu caráter secreto ou confidencial pelo decurso do tempo, não tendo a Recorrente logrado refutar essa presunção mediante demonstração de que, apesar da sua antiguidade, ainda constituíam elementos essenciais da sua posição comercial;
  • O TJUE considerou igualmente que o interesse de uma empresa sancionada por uma coima, em que os detalhes do seu comportamento ilícito não sejam divulgados ao público não constitui um interesse digno de proteção;
  • Não é aplicável, neste caso, uma presunção de que a divulgação da informação controvertida prejudica, em princípio, a proteção dos interesses comerciais das empresas envolvidas e os objetivos de atividades do respetivo inquérito. O TJUE esclareceu que essa presunção (geral) vigora apenas no âmbito do regime de acesso de terceiros ao processo da Comissão (no âmbito de infrações ao artigo 101.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia/TFUE) e não pode ser transposta para a publicação de decisões condenatórias no âmbito do artigo 101.° do TFUE, dada a diferença de interesses que se procura tutelar num e noutro caso.
  • Embora, de acordo com a própria Comunicação da Comissão relativa à clemência, a divulgação das declarações de clemência seja considerada prejudicial à proteção dos objetivos das atividades de inspeção e inquérito, isso não significa, no entender do TJUE, que a Comissão esteja impedida de publicar informações relativas aos elementos constitutivos de uma infração apresentados no âmbito do programa de clemência e que não beneficiam de proteção contra uma publicação a outro título.


Observações finais

No caso em apreço, ficou em aberto, por ora, a questão de saber se a publicação, pela Comissão, das informações controvertidas redundaria numa violação dos princípios da confiança legítima e da igualdade de tratamento, questão a ser apreciada ainda pelo Auditor.

O acórdão vem confirmar que as informações/documentos transmitidos voluntariamente à Comissão no âmbito de um pedido de clemência não beneficiam, por esse facto, automaticamente, de uma proteção genérica de publicação futura.

No que se refere ao âmbito da proteção conferido a informação dada num contexto de clemência, o acórdão do TJUE faz uma destrinça entre citações literais da declaração de clemência, que nunca são permitidas, e citações literais de elementos de informação tirados dos documentos fornecidos à Comissão em apoio de uma declaração de clemência, cuja publicação pode ser autorizada, sob reserva do respeito por segredos de negócios, elementos sujeitos a segredo profissional e outras informações confidenciais.