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01.04.2016

Práticas Individuais Restritivas do Comércio: p’ra pior já basta assim

O regime das PIRC passou a ser aplicável a todas as compras, vendas e prestações de serviços mundiais de empresas estabelecidas em Portugal.

Foi publicado, no dia 8 de Outubro de 2015, o Decreto-Lei n.o 220/2015, que procede à primeira alteração do regime aplicável às Práticas Individuais Restritivas do Comércio (‘PIRC’) que, por sua vez, havia sido integralmente reformulado pelo Decreto-Lei n.o 166/2013. As alterações prendem-se essencialmente com (i) o âmbito de aplicação do Decreto-Lei e, uma vez mais, com (ii) o conceito de preço de compra efetivo no âmbito da venda com prejuízo.


I. Alteração do âmbito objetivo de aplicação do regime das PIRC

O Decreto-Lei n.o 220/2015 alargou o âmbito de aplicação deste regime às compras e vendas de bens e às prestações de serviços com origem ou destino em país não pertencente à EU ou ao EEE e estendeu a sanção de nulidade prevista nos artigo 4.o e 7.o do diploma a todos os contratos, quer estejam sujeitos ou não à Lei Portuguesa. O regime das PIRC passou assim a ser aplicável a todas as compras, vendas e prestações de serviços mundiais de empresas estabelecidas em Portugal.

Pretende-se, aparentemente, com estas alterações, eliminar a discriminação (aliás, difícil de compreender) criada pelo anterior Decreto-Lei em relação à localização das compras ou serviços, ou seja, sujeitar às mesmas regras as compras ou serviços que tenham origem ou destino no EEE ou fora dele. Todavia, esta alteração precoce (decorridos menos de dois anos de vigência) e inesperada (precedendo a avaliação do impacto do diploma, por este prevista) gera, evidentemente, perturbação importante nas empresas portuguesas envolvidas no comércio internacional, atendendo à insegurança que a mesma transmite nas relações comerciais entre operadores económicos.

Com efeito, importa ter em conta que com base na disposição agora revogada, as empresas importadoras ou exportadoras tomaram opções estratégicas de deslocamento dos seus canais de fornecimento ou de adaptação dos seus procedimentos (administrativos, contabilísticos e comerciais) de transação. Trata-se, na maior parte dos casos, de sistemas de contratação complexos com operadores não residentes sem disponibilidade, interesse ou justificação económica para adaptarem às especificidades desta Lei Portuguesa os seus próprios procedimentos de celebração e documentação dos acordos de compra e venda.

II. Conceito de preço de compra efetivo no âmbito da venda com prejuízo

Contudo, estas perturbações são manifestamente relativizadas face à principal intervenção ocorrida, no artigo 5.º, n.º2, do mesmo Decreto-Lei, norma que proíbe a revenda com prejuízo. Conforme é sabido, este é o tema central deste diploma, aquele cuja aplicação prática assume evidente destaque, objecto da larguíssima maioria das iniciativas inspetivas e sancionatórias da autoridade competente para a fiscalização do diploma (ASAE) e área exclusiva de contencioso junto desta e dos tribunais.

Recorde-se que, já depois da entrada em vigência do Regime das PIRC, foi proferido um acórdão de uniformização de jurisprudência sobre o tema da revenda com prejuízo, mais especificamente sobre a determinação do preço de compra efetivo (Acórdão do STJ n.° 9/2014), trazendo um assinalável incremento de segurança e certeza jurídica ao tema dos descontos relevantes.

Ora, o legislador entendeu que se justificava aperfeiçoar o aludido artigo 5.°, n.° 2, acrescentando-lhe novas “precisões”.

Acontece que as referidas “precisões” são profundamente infelizes na sua formulação concreta e na harmonização com a parte mantida da mesma norma. De facto, ao subverterem por completo a sua lógica intrínseca, substituindo aparentemente (ou inadvertidamente?) uma enumeração de pressupostos até aí pacificamente cumulativa por uma enumeração literalmente alternativa, tornam a mesma praticamente impossível de ser interpretada.

Antevê-se nova vaga de litígios entre a ASAE e os “suspeitos do costume”, as empresas retalhistas de maior dimensão, atendendo à moldura contra-ordenacional que está acoplada à lei em causa e às dificuldades óbvias de importar para o direito sancionatório regras de interpretação que possam suprir as insuficiências de um legislador reiteradamente precipitado ou canhestro.

Se o diploma das PIRC já se caracterizava por conseguir reunir uma série de graves deficiências técnicas, tristemente ímpar na produção legislativa mais recente, esta sua modificação logrou ainda piorá-lo: por certo, o n.°2 do artigo 5.° vai gerar o mesmo tipo de dúvidas e incertezas que o seu congénere n.°5 (o qual respeita à determinação do preço de revenda) e que levou à completa paralisação dos seus efeitos.

Estranha-se, aliás, que também este último número tenha sido igualmente modificado apenas num aspecto de absoluto pormenor sem qualquer relevância, ao invés de se tentar resolver a sua deficiência congénita: continua a ser impossível perceber como se calcula o preço de revenda ao público sempre que existem os muito frequentes descontos em transação posterior, “em cartão”, “em talão” ou análogos.

III. Apreciação final

A flutuação da vontade do Legislador – em tão curto espaço de tempo e sem que tenha havido uma discussão prévia sobre as consequências e impactos destas alterações - cria, neste caso, enormes custos de contexto que poderiam ser evitados, uma vez que exige que os sistemas de contratação e de documentação das transacções voltem a ser adaptados no sentido de acomodar as novas alterações (pelo menos as que se conseguem compreender), mantendo, deste modo, um grau de incerteza relevante para as empresas nas negociações com os seus parceiros comerciais.

Por outro lado, por deficiência de redação do diploma (ou, admitimos, da nossa compreensão do mesmo) é impossível sopesar este aspecto negativo com o mérito substantivo das principais alterações efectuadas já que, desafortunadamente, não é possível perceber de todo o seu alcance, o seu fundamento ou a sua razão de ser.

Conforme a popular chula...
“p’ra melhor, ‘stá bem, ‘stá bem, p’ra pior já basta assim”

Se o diploma das PIRC já se caracterizava por conseguir reunir uma série de graves deficiências técnicas, esta sua modificação logrou ainda piorá-lo.