Introdução
Volvidos que estão quase 14 anos sobre a jurisprudência inaugural do Tribunal de Justiça no caso Telaustria1 a respeito do tratamento das concessões à luz do direito da União Europeia, eis que as instituições da União e os Estados-Membros chegaram finalmente a acordo para aprovar o primeiro texto legislativo europeu relativo à adjudicação de contratos de concessão. Trata-se da Diretiva 2014/23/UE, de 26 de Fevereiro (“Diretiva”).
Em larga medida, a nova Diretiva vem consolidar a vasta jurisprudência dos tribunais da União nesta matéria, o que, só por si, tem o mérito de reforçar a segurança jurídica. No entanto, estão também previstas soluções inovadoras e relevantes, que terão seguramente impacto na forma como os Estados-Membros estruturam a oferta de bens e serviços.
Porque surge a necessidade da Diretiva?
Até à aprovação da Diretiva, os contratos de concessão não estavam inteiramente submetidos a uma disciplina jurídica harmonizada no espaço europeu. As diretivas clássicas de contratação pública, que regulam a adjudicação de contratos públicos, excluem expressamente do seu âmbito de aplicação – desde a primeira geração, no início dos anos 70 – as chamadas “concessões de serviços”, só sendo aplicáveis às designadas “concessões de obras”.
Apesar desta exclusão, estava já perfeitamente assente na jurisprudência do Tribunal de Justiça e na prática decisória da Comissão, pelo menos desde o acórdão Telaustria, que, embora as concessões de serviços não estivessem sujeitas ao regime jurídico das directivas sobre contratos públicos, as entidades concedentes que as outorgassem estariam, ainda assim, obrigadas a respeitar as regras e os princípios gerais dos Tratados, designadamente os que respeitam à não discriminação em razão da nacionalidade, à igualdade de tratamento, à transparência, ao reconhecimento mútuo, à proporcionalidade e à salvaguarda da concorrência no mercado interno.
Em termos práticos, isto significa que, já antes da Diretiva, as entidades concedentes tinham a obrigação de garantir, a favor de todos os potenciais concorrentes, um grau de publicidade adequado para garantir a abertura à concorrência do serviço concessionado, bem como o controlo da imparcialidade dos processos de adjudicação.
Dito isto, a verdade é que sempre existiu uma disparidade grande na forma como cada Estado interpreta estas regras e princípios e como as implementa no contexto dos procedimentos de concessão, o que levou a que grande parte da jurisprudência neste campo tenha sido construída à custa de reenvios prejudiciais, numa primeira fase, e de processos por incumprimento movidos pela Comissão contra os Estados, num segundo momento. Deste ponto de vista, a Diretiva tem a grande vantagem de estabilizar um conjunto de normas materiais e processuais aplicáveis às concessões, contribuindo para uma aplicação uniforme do direito da União.
Âmbito da Diretiva
Em obediência ao princípio da neutralidade da UE face ao regime de propriedade dos Estados-Membros2, a Diretiva reconhece e reafirma o direito dos Estados determinarem a forma mais adequada de organizarem e executarem obras e prestarem serviços nos seus territórios. Em particular, nada na Diretiva condiciona a opção por um modelo de gestão pública ou privada. Porém, se os Estados optarem por delegar a disponibilização de bens ou serviços a terceiros (sejam estes entidades públicas ou privadas) o direito da UE tem uma palavra a dizer.
A Diretiva cobre a maioria dos contratos de concessão de obras e serviços, embora estejam previstas importantes derrogações às regras gerais (por exemplo, nos setores da energia, dos transportes e dos serviços postais) e mesmo exclusões (por exemplo, no setor da água, no transporte aéreo, na defesa e segurança, em determinados serviços de comunicação social audiovisuais ou radiofónicos, nos jogos de azar ou nas apostas, nos valores mobiliários ou em atividades diretamente expostas à concorrência).
Outra importante exclusão diz respeito à contratação in house. Na senda da vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça inaugurada no acórdão Teckal3, a Diretiva reconhece que as autoridades e entidades adjudicantes públicas estão dispensadas de aplicar essa Diretiva se:
(i) exercerem sobre a entidade concessionária um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços,
(ii) mais de 80% das atividades da concessionária forem realizadas na execução de tarefas cometidas pela autoridade ou entidade adjudicante e,
(iii) a concessionária não for diretamente participada por capital privado, com exceção das formas de participação de capital privado não controladoras e não bloqueadoras exigidas por disposições legislativas nacionais compatíveis com os Tratados e que não confiram uma influência determinante sobre a concessionária.
Esta última condição aplicável à contratação in house representa uma evolução assinalável face ao atual estádio da jurisprudência e da prática decisória europeias neste campo, que – de forma, por vezes, pouco razoável – orientavam-se no sentido de considerar que a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma concessionária prejudica, só por si, a possibilidade de as autoridades ou entidades adjudicantes públicas exercerem sobre a concessionária um controlo análogo ao que exercem sobre os respetivos serviços4.
Na Diretiva, reconhece-se agora que aquele tipo de participações privadas em sociedades concessionárias não prejudica a adjudicação direta de tarefas públicas às concessionárias «visto que tais participações não afetam negativamente a concorrência entre operadores económicos privados»5. Paralelamente, a circunstância de a Diretiva apenas vedar a participação «direta» de capital privado pode conferir ainda maior amplitude aos Estados na configuração da contratação de tipo in house.
Fora das derrogações e exclusões contempladas, a Diretiva vem essencialmente prever uma coordenação de procedimentos nacionais para a adjudicação de concessões que, em face do seu valor (igual ou superior a € 5,186 milhões), são suscetíveis de despertar maior interesse transfronteiriço. Em regra, a adjudicação deste tipo de concessões terá de ser precedida da publicação de um anúncio no Jornal Oficial de acordo com formulários-tipo que serão definidos pela Comissão.
Passa também a haver um mínimo denominador comum no que respeita a termos essenciais do procedimento de adjudicação, como os prazos mínimos de receção das propostas (em princípio 30 dias a contar do envio do anúncio), os critérios de seleção (que terão de ser proporcionais, não discriminatórios, equitativos, relacionados com o objeto do contrato, divulgados antecipadamente e escalonados por ordem de importância) e a duração das concessões (para as concessões com um prazo superior a 5 anos, a duração deve limitar-se ao que for razoavelmente necessário para o concessionário recuperar o investimento e obter uma remuneração do capital em condições de exploração normais).
Outro aspeto relevante da Diretiva é o de ajudar a clarificar as situações em que a modificação de uma concessão durante a sua vigência exige um novo procedimento de adjudicação. No essencial, trata-se dos casos em que os parâmetros alterados poderiam ter tido influência no desfecho do procedimento se tivessem sido previstos inicialmente (v.g., âmbito da concessão ou direitos e obrigações recíprocos das partes). Estão, no entanto, previstas regras que disciplinam as cláusulas de alteração de circunstâncias previstas nos documentos iniciais da concessão e que estabelecem limiares “de minimis”, sendo que, nestas duas situações, não é necessário organizar um novo procedimento de adjudicação.
Entrada em vigor e transposição
A Directiva entrou em vigor no passado dia 17 de abril, devendo ser transposta pelos Estados-Membros até 18 de abril de 2016.
Reflexões finais
Foram necessários alguns anos para os Estados-Membros reconhecerem a relevância da instituição de regras jurídicas harmonizadas no espaço europeu em matéria de concessões.
A negociação de um regime jurídico com este alcance representa, pela sua complexidade, duração e diversidade, um desafio particularmente exigente do ponto de vista legístico. Isto significa que, qualquer ensaio normativo que se faça neste âmbito, tem que traçar um equilíbrio delicado entre, por um lado, garantias básicas a favor da igualdade de tratamento e da concorrência entre operadores e, por outro, flexibilidade para os Estados organizarem da forma mais eficiente o procedimento de escolha dos concessionários.
No confronto entre estes dois interesses, que estiveram sempre presentes nos trabalhos legislativos que conduziram à aprovação da Diretiva, o balanço final parece-nos ser um texto globalmente equilibrado que contribui para a segurança jurídica das entidades públicas e privadas.
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1 Acórdão de 7.12.2000, processo C-324/98.
2 Cfr. artigo 345.º TFUE.
3 Acórdão de 18.11.1999, processo C-107/98.
4 Linha jurisprudencial adotada, pela primeira vez, no acórdão C-26/03 Stadt Halle, de 11.1.2005, e reafirmada em dezenas de casos posteriores. No mesmo sentido, cfr. Comunicação interpretativa da Comissão sobre a aplicação do direito comunitário em matéria de contratos públicos e de concessões às parcerias público-privadas institucionalizadas, de 12.4.2008.
5 Considerando (46), § 2.