01.12.2012
Proibição genérica de venda pela Internet é incompatível com o direito da concorrência – o acórdão “Pierre Fabre”
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu recentemente um acórdão1 no qual se pronuncia sobre a (in)admissibilidade, à luz do direito da concorrência da União Europeia, de uma proibição genérica de venda pela Internet, imposta no contexto de um sistema de distribuição selectiva.
Principais factos
A Pierre Fabre Dermo-Cosmetique SAS (“Pierre Fabre”), distribuía os seus produtos de cosmética e higiene corporal (marcas Avène, Klorane, Galénic e Ducray) ao abrigo de contratos de distribuição selectiva, que contêm uma cláusula impondo a obrigatoriedade de venda dos produtos em causa exclusivamente num espaço físico e na presença obrigatória de um farmacêutico (“cláusula controvertida”) Estas exigências significam, na prática, a exclusão de qualquer forma de venda pela Internet (“vendas online”).
A Pierre Fabre justificava a cláusula controvertida com base na natureza dos produtos em causa: trata-se de produtos de cuidados de saúde, envolvendo o risco de reacção alérgica e que impõem o conselho personalizado de um especialista, baseado na observação directa do cliente. Adicionalmente, alegava que proibição de vendas online era necessária para prevenir os riscos de contrafacção e de parasitismo entre revendedores autorizados.
A empresa foi alvo de uma decisão condenatória do Conselho da Concorrência francês, que considerou que a cláusula controvertida tinha o objectivo de restringir a concorrência no mercado (dispensando uma apreciação dos efeitos) e ainda, que os acordos em questão eram insusceptíveis de beneficiar da isenção por categoria conferida pelo Regulamento n.° 2790/199 (que confere, na prática, uma presunção de legalidade ao acordo) ou sequer de uma isenção individual (que permite a justificação, com base num balanço económico positivo, de acordos aparentemente anti-concorrenciais). O Conselho da Concorrência multou a Pierre Fabre pelo ilícito e ordenou-lhe que modificasse os acordos.
A empresa recorreu da decisão condenatória para a “Cour d’Appel de Paris” (tribunal de reenvio) que, por seu turno, decidiu suspender a instância e submeter ao TJUE um conjunto de questões relativas à interpretação jurídica das normas aplicáveis.
As questões apreciadas pelo acórdão
(i) A proibição de vendas pela Internet tem por objectivo restringir a concorrência?
A resposta à questão dependia, no caso, de saber se as exigências qualitativas impostas aos revendedores seleccionados Pierre Fabre (exigências essas que, como se viu, conduziam, na prática, numa proibição de vendas on-line) constituíam requisitos qualitativos admissíveis, no contexto do sistema de distribuição selectiva em causa. De acordo com a jurisprudência relevante tal depende, nomeadamente, de saber se as mesmas são necessárias para garantir a distribuição adequada dos produtos em questão (isto é, para preservar a sua qualidade ou assegurar a sua boa utilização).
O TJUE, procurando fornecer ao tribunal de reenvio elementos de interpretação do direito da União Europeia, começou por recordar jurisprudência anterior, na qual havia apreciado determinadas medidas estatais que proibiam vendas online de medicamentos não sujeitos a receita médica e de lentes de contacto e a compatibilidade de tais medidas com o princípio da livre circulação de mercadorias. Resulta dessa jurisprudência que a necessidade de assegurar um aconselhamento personalizado ao cliente ou de garantir a utilização correcta de tais produtos não constituem motivos legítimos, capazes de justificar uma excepção ao supra-referido princípio. Pese embora a disparidade de contextos de análise, a invocação efectuada pelo TJUE parece sugerir que também neste caso, a necessidade de se garantir aconselhamento personalizado ou o uso correcto do produto não são justificação suficiente para a imposição de restrições à distribuição online de cosméticos.
O TJUE recusou ainda o argumento da Pierre Fabre, de que a proibição de vendas on-line era necessária para preservar a imagem de prestígio dos produtos em causa.
Embora sem resolver a questão de fundo (da competência do órgão de reenvio), o TJUE concluiu que a cláusula controvertida constituirá uma restrição da concorrência por objecto, se, na sequência de um análise individual e concreta do teor e objectivo da cláusula e do seu contexto jurídico e económico, o tribunal de reenvio entender que, face às propriedade do produto em causa, a mesma não é objectivamente justificada.
(ii) Possibilidade de uma isenção por categoria ou de uma isenção individual
Quanto à isenção por categoria, estava em causa, fundamentalmente, uma interpretação divergente do teor do Regulamento n.° 2790/1999: para a Pierre Fabre, a proibição imposta sobre as vendas on-line é o mesmo que proibir um membro do sistema de distribuição selectiva de operar a partir de um “local de estabelecimento não autorizado” (proibição essa que é admitida pelo Regulamento); para o TJUE essa interpretação é incorrecta porquanto a referência a “um local de estabelecimento” visa apenas pontos de venda onde se pratiquem vendas directas e não é possível, no caso, efectuar a interpretação extensiva do conceito pretendida pela Pierre Fabre.
O TJUE considerou as restrições impostas como subsumíveis ao conceito de “ restrição de vendas activas ou passivas a utilizadores finais por membros de um sistema de distribuição selectiva que operam ao nível retalhistas...” o que exclui a aplicação do regulamento (e logo, a presunção de legalidade conferida pelo mesmo aos acordos em questão).
Por fim, o TJUE reconheceu que, mesmo na ausência de presunção de legalidade referida acima, as partes no acordo devem ter a possibilidade de alegar e provar a verificação dos requisitos estabelecidos no n., 3 do art. 101, TFUE e, dessa forma, beneficiar da isenção individual reconhecida pelo referido artigo. Uma tal análise caberia, no caso, ao tribunal de reenvio e não ao TJUE.
Comentário
Até à prolação deste acórdão e tanto quanto é do nosso conhecimento, o TJUE não havia sido chamado a pronunciar-se sobre uma recusa genérica de venda pela Internet num sistema de distribuição selectiva, especificamente à luz das disposições do direito da concorrência da União Europeia. Pese embora a novidade do tema, as conclusões vertidas no acórdão não surpreendem. Ainda assim, o guidance dado ao tribunal de reenvio afigura-se mínimo e o acórdão beneficiaria, nalguns pontos, de uma densificação adicional (atento o teor de alguma jurisprudência anterior em matéria de distribuição selectiva em geral e a relativa novidade do “tema” Internet, neste contexto).
A adopção, na pendência do processo, de novas Orientações sobre restrições verticais2 veio fornecer às empresas indicações significativamente mais detalhadas e actualizadas quanto às possibilidades e aos limites de utilização da Internet.
É hoje claro, à luz de tais Orientações, que um fornecedor não pode impedir os seus distribuidores de utilizarem a Internet para a distribuição e venda dos bens contratuais, embora se admita que o fornecedor possa impor requisitos a tal utilização, nomeadamente quando necessário para garantir as características fundamentais do sistema de distribuição em causa (desde que com base num rationale equivalente ao que impõe restrições à distribuição ou venda off-line), bem como exigir que o distribuidor explore também estabelecimentos físicos de venda ao público.
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1 Acórdão do TJUE de 13.10.2011, prc. C-439/09.
2 As quais acompanham o Regulamento (EU) n., 330/2010, adoptado em substituição do Regulamento (CE) n., 2790/1999, embora sem modificar substancialmente este último, na matéria aqui em causa.