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01.12.2012

Projecto de Proposta de Lei da Concorrência submetido a consulta pública

No passado dia 4 de Novembro de 2011, o Governo submeteu a consulta pública o Projecto de Proposta de Lei sobre o Regime Jurídico da Concorrência (“Projecto”) aprovado em Conselho de Ministro no dia 27 de Outubro de 2011, conforme previsto no Memorando de Entendimento celebrado entre o Estado Português, o FMI, a União Europeia e o Banco Central Europeu, no âmbito do programa de assistência financeira.

O Projecto foi apresentado pelo Governo como uma das medidas necessárias ao aumento do “crescimento económico, do emprego e do reforço da concorrência entre empresas”, uma vez que a economia portuguesa “carece de uma Política de Concorrência que seja ela própria indutora da competitividade das empresas e da confiança dos diversos agentes económicos”.

A MLGTS respondeu à solicitação do Governo e apresentou, no âmbito da consulta pública, um conjunto de observações sobre diversos aspectos formais e substantivos do Projecto que, em nosso entendimento, merecem uma maior reflexão e análise. Referimos de seguida alguns desses aspectos.

No plano formal, a opção acolhida quanto à sistematização do diploma merece-nos reparo. Com efeito, é difícil compreender que o regime jurídico de defesa da concorrência, assim como o regime jurídico da “clemência”, que constituem a essência do regime legal que se pretende aprovar, sejam remetidos para anexos e não integrem o texto da própria lei. Para além disso, pensamos que há vantagem em que o regime jurídico da “clemência” conste, em capítulo próprio, do texto da lei de defesa da concorrência, dando coerência ao conjunto e facilitando a interpretação sistémica das suas disposições. A opção que consta do Projecto, para além de não respeitar as regras de legística que estão em vigor, complexifica o trabalho de invocação de normas e origina dificuldades desnecessárias na referenciação e citação de e para as normas constantes de cada um dos anexos.

No plano substantivo, e no que diz respeito à prossecução das atribuições da Autoridade da Concorrência (AdC) relativamente à investigação de eventuais ilícitos, a substituição do princípio da legalidade pelo princípio da oportunidade merece-nos alguns comentários. Com efeito, a redacção que consta do artigo 6º do Projecto confere à AdC uma margem de apreciação discricionária de tal forma ampla, no que diz respeito às decisões de abertura de inquérito, que a sua actuação nesse domínio deixa de ser sindicável, o que não é aceitável. Embora se compreenda a preocupação de assegurar um melhor desempenho da AdC, mediante a possibilidade de alocar os meios e recursos disponíveis em função de prioridades oportunamente definidas, é indispensável equilibrar o regime com uma tutela adequada dos direitos dos denunciantes, definindo na lei critérios de actuação e impondo à Autoridade o dever de fundamentar a rejeição de queixas.

As alterações propostas em matéria de práticas restritivas da concorrência também merecem alguns comentários, pois introduzem um claro desequilíbrio entre, por um lado, os poderes de investigação, decisão e sanção que são conferidos à AdC, e, por outro, os direitos de defesa das empresas investigadas.

E este desequilíbrio é patente a diversos níveis, de entre os quais, destacamos: o prazo regra de 5 dias úteis de que dispõem as empresas para exercerem os seus direitos processuais, ou a possibilidade de se fixar um prazo de 10 dias úteis para a empresa responder à nota de ilicitude (acusação), os quais se revelam manifestamente insuficientes para o cabal e efectivo exercício dos direitos de defesa das arguidas, e que contrastam com a ausência de qualquer prazo para a AdC decidir sobre a rejeição de uma queixa ou a abertura de inquérito e concluir a sua investigação; os poderes de inquirição, busca e apreensão atribuídos à AdC, sem qualquer paralelo no ordenamento jurídico nacional em matéria de direito contra-ordenacional; a atribuição à AdC da possibilidade de, já depois de emitida a nota de ilicitude (acusação), realizar novas diligências probatórias, com base nas quais poderá alterar substancialmente os factos imputados à empresa arguida ou a sua qualificação.

A consagração do efeito meramente devolutivo dos recursos judiciais que tenham por objecto decisões condenatórias da AdC por práticas restritivas da concorrência (em substituição do actual efeito suspensivo) suscita sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade, à luz do princípio da presunção de inocência, além de não encontrar tradição expressiva entre nós, nem em processos crime, nem em contra-ordenações.

Se o objectivo do Projecto é o de evitar a utilização do recurso com efeitos meramente dilatórios, então existem certamente outros mecanismos, menos gravosos e não violadores de princípios constitucionais, capazes de alcançar esse objectivo. O próprio Projecto vem porventura consagrar o instrumento que maior desincentivo cria à interposição de recursos “só por interpor”, que é a possibilidade de reformatio in pejus. Por outro lado, consagrar o efeito devolutivo em relação a decisões da AdC (que não constituem caso decidido) que apliquem sanções acessórias como a proibição de participação em concursos públicos ou medidas estruturais como desinvestimentos parece totalmente desadequado. Quid em caso de decaimento da decisão da AdC? E quanto à aplicação de sanções financeiras, entretanto pagas pelas empresas, quid se as mesmas forem anuladas ou reduzidas por decisão judicial? São devolvidas pela AdC? Em que prazo? Com juros? Com correcção monetária? A ausência de qualquer resposta a estas questões no Projecto indicia que as soluções consagradas não foram suficientemente ponderadas.

Relacionado ainda com o capítulo das práticas restritivas, note-se que as alterações propostas em matéria de “Estudos, inspecções e auditorias”, em particular nos artigos 61° e 62° do Projecto, não asseguram devidamente as garantias de defesa das empresas, pois permite-se que a AdC, no âmbito dos seus poderes de inspecção e de auditoria, exerça prerrogativas equivalentes às dos processos sancionatórios (nomeadamente em matéria de buscas e de apreensão de documentos), mas neste caso sem sujeição a qualquer controlo judicial, o que não é aceitável.

No que diz respeito ao procedimento de controlo das operações de concentração de empresas, destacamos alguns aspectos em que as soluções consagradas no Projecto devem ser melhoradas. Em primeiro lugar, é indispensável clarificar o alcance do artigo 36°, que enuncia os critérios que determinam a obrigatoriedade de notificação de transacções à AdC. A redacção acolhida é desnecessariamente confusa, numa área em que a segurança jurídica é de importância capital para as empresas, em especial no que se refere ao alcance do critério da quota de mercado.

Quanto ao teste substantivo, e tendo em conta o objectivo de aproximação ao regime europeu, importa consagrar na lei não apenas o critério de proibição, mas também o de autorização, distinguindo destes o critério que determina a abertura de investigação aprofundada, no final da 1ª fase do procedimento de controlo de concentrações. Neste domínio, o critério das “sérias dúvidas”, acolhido no regulamento europeu das concentrações, parece-nos ser o mais adequado. Em terceiro lugar, a manutenção, sem qualquer limite, da regra da suspensão dos prazos de investigação em consequência do envio de pedidos de informação por parte da AdC, não nos parece ser boa solução. Sugerimos um alinhamento, nesta matéria, com o regime europeu (que distingue os pedidos simples dos pedidos decorrentes de decisão formal), que nos parece ser indutor de mais disciplina e celeridade, tanto para a AdC como para as empresas. Isto, sem prejuízo de se reconhecer que a AdC tem aplicado com prudência o regime em vigor. Também no que toca à tramitação do procedimento, consideramos que devem ser introduzidas alterações que compatibilizem a segurança jurídica a que as empresas aspiram com a flexibilidade de que a AdC deve dispor para gerir o procedimento com eficiência.

Por fim, as soluções acolhidas no Projecto em matéria de infracções e sanções merecem, em nosso entendimento, alguma reflexão adicional. Apontamos três aspectos que nos parecem assumir particular relevância. Em primeiro lugar, a revisão do actual regime da concorrência é o momento para clarificar que as coimas aplicáveis pela AdC devem incidir, em regra, sobre os volumes de negócios realizados em Portugal. Em segundo lugar, a punição de associações de empresas tal como previsto no Projecto afasta-se das soluções preconizadas na legislação europeia e na actual Lei da Concorrência, e mais importante, afasta-se da jurisprudência dos tribunais nacionais. Por fim, o Projecto alarga os prazos gerais de prescrição actualmente previstos no regime das contra-ordenações que, em alguns casos, excedem mesmo o prazo máximo de prescrição de alguns crimes, o que nos parece excessivo e desadequado.


Comentário

A submissão do Projecto a consulta pública, que se saúda, é uma oportunidade única para a participação de todos os interessados na revisão de um regime jurídico que assume uma inegável importância e impacto na economia, e no qual o Governo pretende introduzir profundas alterações. É também uma oportunidade ímpar para o Governo auscultar as empresas e a comunidade jurídica quanto às principais preocupações e dificuldades suscitadas ao longo de mais de 8 anos de vigência do actual regime.

A reforma que agora se inicia e que pretende assegurar que sejam reforçados os meios de que a Autoridade da Concorrência já dispõe para exercer cabalmente as suas atribuições, não pode descurar o respeito pelas garantias constitucionais das empresas arguidas, o qual se exprime, antes de mais, na existência de um controlo judicial efectivo.

O objectivo do Governo, que se aplaude, de “dissuadir os comportamentos anticoncorrenciais e reforçar a aplicação efectiva e célere das regras de concorrência” não legitima, por si só, algumas das opções legislativas que o Projecto apresenta, como acima sublinhámos. Pelo exposto, parece-nos importante a realização de uma reflexão adicional em relação a pontos-chave do Projecto, esperando-se do Governo a abertura necessária para acolher, senão todas, algumas das propostas que certamente irá receber dos mais variados sectores da sociedade, introduzindo no regime jurídico de defesa da concorrência a necessária equidade e segurança jurídica.

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