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30.07.2012

Recursos Judiciais

Para benefício do leitor, focar-nos-emos no regime aplicável aos recursos de processos contraordenacionais, dado que não existem alterações de relevo nos recursos relativos a processos administrativos. Inclusivamente, mantém-se o desequilíbrio, herdado da anterior lei, entre a existência de apenas dois graus de jurisdição para processos contraordenacionais, face aos três níveis de recurso nos processos administrativos, tendencialmente menos complexos e com consequências menos gravosas.


Considerações gerais

A matéria dos recursos contraordenacionais é das que mais polémica tem gerado no quadro do novo regime.

Desde pelo menos 2008 que a Autoridade propugna por uma revisão dos mecanismos de recurso judicial em matéria contraordenacional. No entender da Autoridade, haveria necessidade de reduzir os incentivos para o que considera ser o uso indiscriminado deste direito por parte dos arguidos.

Ora, a verdade é que os factos se encarregam de contradizer a tese do uso generalizado dos recursos com propósitos dilatórios. Desde logo, qualquer limitação a direitos constitucionalmente garantidos e plenamente consolidados nas ordens jurídicas democráticas, como o acesso à justiça e a presunção de inocência, só deveria equacionar-se em face de ponderosos valores de alcance equivalente. O que não nos parece ser o caso aqui.

Os próprios números comprovam que, num conjunto significativo de casos, os tribunais portugueses acabaram por decidir a favor das empresas, anulando, no todo ou em parte, as decisões da AdC. Esta circunstância demonstra, só por si, a necessidade de se continuar a manter um escrutínio judicial efetivo sobre a atividade desenvolvida pela Autoridade neste campo.

Ainda assim, o legislador introduziu importantes modificações no sistema de recursos em processos de práticas restritivas da concorrência.


O recurso passa a ter, em regra, efeito meramente devolutivo

Inverteu-se a regra clássica, das infrações penais e da vasta maioria das contraordenações, de que a interposição de recurso contra uma decisão da AdC suspendia os efeitos dessa decisão até trânsito em julgado. Passou agora a consagrar-se a natureza devolutiva destes recursos, o que significa que a decisão tem de ser executada pelos arguidos ainda antes de o tribunal a apreciar, com as ressalvas que veremos adiante.

O impacto desta alteração é particularmente gravoso, atendendo, em especial, ao elevadíssimo valor que as coimas podem atingir neste domínio, à dificuldade que existe em reaver do Estado montantes que lhe hajam sido indevidamente pagos e à ausência de qualquer mecanismo de reposição do valor económico desses montantes indevidamente pagos (e, como tal, das perdas económicas em que incorrem as empresas nesta situação) no caso de a AdC vir a decair na ação judicial. No texto da nova lei, procurou-se, de alguma forma, mitigar as implicações negativas convocadas por esta modificação de regime, ao, por um lado, excecionar do efeito devolutivo as medidas de caráter estrutural que acompanhem a decisão condenatória e, por outro, prever a possibilidade de o recurso assumir efeito suspensivo quando o arguido demonstre que a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável e preste caução. A primeira exceção parece-nos o mínimo aceitável, atendendo ao efeito irreversível das medidas estruturais. Resta saber que aplicação terão os casos de efeito suspensivo e se, na prática, atendendo às dificuldades e exigências financeiras que as empresas enfrentam e aos montantes, prazos e critérios de prestação de caução que venham a ser definidos pelo novo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, a substituição da coima pela caução não se revelará inviável.

É certo que a possibilidade de suspensão do pagamento da coima pelo tribunal corresponde ao modelo da UE, mas também é verdade que a Comissão dispõe de uma elevadíssima taxa de sucesso antitrust e que esse modelo existe há quase 50 anos, tendo sido criado numa época e num contexto que em nada se assemelham aos dos tempos atuais, com as dificuldades de financiamento que são conhecidas.


Possibilidade de reformatio in pejos

A iniquidade do efeito devolutivo torna-se tanto mais patente quanto é certo que outro aspeto do novo regime dos recursos bastaria para salvaguardar os receios da Autoridade e dissuadir do uso leviano deste direito. Falamos da competência de plena jurisdição de que passa a beneficiar o tribunal competente, que pode agora manter, reduzir ou aumentar as coimas e demais sanções aplicadas pela AdC.


As decisões de arquivamento são irrecorríveis

A nova lei estabelece que não é admissível recurso de decisões de arquivamento, com ou sem imposição de condições, o que, anunciado nestes moldes absolutos, é algo que não se percebe. Desde logo, uma empresa visada por uma decisão de arquivamento mediante condições pode ter interesse em recorrer dessa decisão, se, por exemplo, a AdC impuser condições que não resultem de compromissos propostos pelo visado. Note-se, aliás, que, nem no caso de uma decisão resultante do procedimento de transação a lei impede o recurso pelo arguido, limitando-se a proibir o venire contra factum proprium, estabelecendo assim que os factos confessados pelo visado não podem ser por este judicialmente impugnados.

Mas onde nos parece que a irrecorribilidade das decisões de arquivamento se torna mais inexplicável e injusta é quanto aos queixosos. Inexplicável e injusta em termos absolutos, por não haver qualquer razão que deva impedir os denunciantes de verem a sua pretensão sindicada judicialmente num caso em que a AdC se recuse a agir, e também em termos relativos. Não parece fazer sentido que as decisões da Autoridade que rejeitem denúncias sejam expressamente recorríveis nos termos do artigo 8.o, n.o 4, e que as decisões de arquivamento em sede de inquérito ou mesmo de instrução não o sejam, quando é certo que nestes últimos casos terá até havido diligências probatórias que podem aproveitar ao queixoso.


O prazo de recurso foi alargado, mas é ainda insuficiente

O prazo para recorrer das decisões finais condenatórias passa de 20 para 30 dias úteis, o que, ainda assim, nos parece escasso, atendendo à complexidade, à dimensão e às consequências sancionatórias dos processos desta natureza. Basta pensar que, para responder à nota de ilicitude no termo do inquérito, o arguido dispõe de um prazo não inferior a 20 dias úteis, e que o recurso das decisões finais condenatórias (que são tipicamente muitos extensas) exige uma reapreciação da totalidade do caso. Teria sido preferível, conforme sugerido na consulta pública, alinhar com o prazo de 2 meses da ação de anulação a nível da União Europeia.