A concessão de descontos por uma empresa aos seus clientes é uma realidade universal nas economias contemporâneas. No entanto, na União Europeia as políticas de descontos das empresas consideradas dominantes (e podem colocar-se preocupações de dominância a partir de quotas de mercado entre 40-50%) têm sido tradicionalmente objeto de uma jurisprudência restritiva por parte dos tribunais europeus no que respeita à sua compatibilidade com o artigo 102.º TFUE, que proíbe o abuso de posição dominante.
No recente acórdão Post Danmark II1, aguardado com grande expectativa, o Tribunal de Justiça da União Europeia confirmou em larga medida a sua jurisprudência anterior, criticada pelo formalismo excessivo e por algum afastamento da realidade económica. Em todo o caso, o acórdão clarifica os critérios para aplicar o artigo 102.º TFUE aos regimes de descontos praticados por empresas dominantes, e em certas passagens indicia (mesmo que timidamente) uma tentativa de evolução para uma análise baseada no efeitos das condutas das empresas no mercado.
Os factos
O acórdão Post Danmark II resulta de um reenvio prejudicial do Tribunal de Comércio da Dinamarca a propósito de um regime de descontos retractivos utilizado pela Post Danmark (o operador do serviço postal universal) para os envios diretos de publicidade pelo correio, que havia sido declarado contrário ao artigo 102.º TFUE pela autoridade de concorrência dinamarquesa.
Os descontos em questão variavam entre 6% e 16% e dependiam de o cliente atingir determinados escalões (em termos de número de cartas expedidas ou do valor de despesas de porte) durante o período de referência de um ano. No fim do ano a Post Danmark procedia a um ajustamento dos preços inicialmente pagos pelos clientes, tendo em conta os volumes efetivamente expedidos. Os escalões eram aplicáveis de forma standard a todos os clientes da Post Danmark, independentemente de a distribuição ter ou não lugar em zonas não abrangidas por outros operadores.
Critérios para determinar o caráter abusivo dos regimes de descontos
A primeira questão do tribunal dinamarquês dizia respeito aos critérios aplicáveis à análise de um regime de descontos condicionais como o praticado pela Post Danmark à luz do artigo 102.º TFUE. Desenvolvendo (e clarificando) a jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça, o acórdão identifica três categorias de descontos, aos quais são aplicáveis critérios distintos:
- Os descontos de quantidade, ligados exclusivamente ao volume de compras efetuadas ao fornecedor numa determinada encomenda ou pedido individual, são admissíveis, na medida em que correspondem às poupanças obtidas pela empresa dominante.
- Os descontos de fidelidade, concedidos aos clientes que se comprometam a adquirir todas ou a maior parte das suas necessidades à empresa dominante, são considerados abusivos, exceto se puderem ser objetivamente justificados pela empresa dominante (demonstração na prática impossível ou muito difícil).
- Os outros descontos não inseridos nas duas categorias anteriores, em particular os descontos condicionais, concedidos se o comprador atingir determinados objetivos de compras num determinado período, devem ser analisados tendo em conta todas as circunstâncias relevantes para aferir se o desconto é suscetível de produzir um efeito de exclusão anti-concorrencial, por restringir ou impedir o acesso de concorrentes ao mercado ou a possibilidade de os clientes escolherem entre várias fontes de abastecimento do mercado.
Relativamente a esta terceira categoria, na qual se enquadravam os descontos em causa, o Tribunal de Justiça confirmou a jurisprudência existente, segundo a qual para a análise da sua compatibilidade são relevantes designadamente os critérios e as modalidades de concessão do desconto, bem como a extensão da posição dominante e as condições de concorrência específicas do mercado relevante (designadamente as restrições de caráter regulatório).
Neste contexto, o Tribunal de Justiça concluiu que o regime de descontos praticado pela Post Danmark tendia a tornar mais difícil o abastecimento dos clientes junto de empresas concorrentes, produzindo um efeito de exclusão anti-concorrencial. Com efeito, relativamente aos critérios e modalidades do regime de descontos, o Tribunal retomou a sua jurisprudência anterior, considerando que:
- Os descontos em causa eram retroativos (a percentagem de desconto e aplicada a toda a correspondência enviada ao longo do período de referência) e não progressivos (o desconto é concedido apenas aos produtos comprados acima do respetivo limiar de aplicação), levando a que as obrigações contratuais dos clientes da empresa dominante e a pressão exercida sobre estes possam “ser particularmente fortes”;
- O período de referência de um ano era um “período relativamente longo”, o que faz aumentar a pressão para o comprador no sentido de realizar o volume de compras necessário a fim de obter a vantagem ou de não sofrer a perda prevista para a totalidade do período de referência.
No respeitante à análise da posição dominante e das condições de concorrência específicas do mercado (que indicia uma análise mais atenta dos efeitos prováveis da prática sobre a concorrência no mercado), o Tribunal notou que a Post Danmark dispunha de uma quota de 95% num mercado era caracterizado por elevadas barreiras à entrada, incluindo limitações regulamentares e economias de escala significativas. A empresa gozava ainda de vantagens estruturais, designadamente resultantes do monopólio legal do serviço postal universal, que abrangia 70% do correio distribuído, e de uma cobertura geográfica única, que englobava todo o território dinamarquês.
Por outro lado, questionado sobre a circunstância de os descontos praticados abrangerem a maior parte dos clientes do mercado, o Tribunal considerou que tal não constitui, por si só, um indício de abuso, embora possa constituir uma indicação útil da importância dessa prática e do seu impacto no mercado, uma vez que pode reforçar a probabilidade de um efeito de exclusão anti-concorrencial.
Por fim, o Tribunal de Justiça recordou que, não obstante o efeito de exclusão, a Post Danmark poderia invocar perante o tribunal nacional uma justificação objetiva para a sua conduta, designadamente demonstrando que o efeito de exclusão poderia ser compensado, ou mesmo superado, por ganhos de eficiência suscetíveis de beneficiar também o consumidor (demonstração que, não obstante, é muito difícil na prática).
Utilização do teste do “concorrente igualmente eficiente”
O Tribunal de Justiça foi também questionado sobre a relevância do critério ou teste do “concorrente igualmente eficiente” no âmbito da apreciação de um regime de descontos à luz do artigo 102.0 TFUE.
Este critério, que tem vindo a ser utilizado pela jurisprudência para práticas abusivas com base no preço (preços predatórios, preços seletivos ou compressão de margens), visa determinar se os preços praticados são predatórios, ou seja, são suscetíveis de excluir um concorrente tão eficiente quanto a empresa dominante. Para este efeito, os preços praticados pela empresa dominante são comparados com os custos variáveis suportados por essa empresa (ou um indicador equivalente).
A aplicação deste critério aos regimes de descontos tem sido amplamente defendida pela doutrina, e o mesmo critério foi adotado pela Comissão Europeia na sua comunicação sobre as prioridades na aplicação do artigo 102.0 TFUE a comportamentos de exclusão praticados por empresas dominantes, publicada em 20092.
O Tribunal de Justiça não excluiu o recurso ao critério do concorrente igualmente eficiente para aferir da existência de um abuso de posição dominante no âmbito de um regime de descontos. Este critério deve ser considerado “um instrumento entre outros”, sem todavia constituir uma condição indispensável para verificar o caráter abusivo de um sistema de descontos, pelo que as autoridades de concorrência não têm qualquer dever de o “tomar como base sistematicamente”.
Nas circunstâncias específicas do processo Post Danmark II, porém, o Tribunal de Justiça rejeitou a aplicação do critério do concorrente igualmente eficiente por o mesmo não ser pertinente. Com efeito, a estrutura e características do mercado relevante tornavam praticamente impossível a existência de um concorrente igualmente eficiente à Post Danmark, pois o incumbente postal dinamarquês dispunha de uma quota de mercado muito elevada e de vantagens estruturais não replicáveis por outros concorrentes, em resultado do monopólio legal de que beneficiava relativamente a 70% do mercado em causa.
Probabilidade e caráter sensível do efeito de exclusão
O Tribunal de Justiça reafirmou a jurisprudência anterior segundo a qual não é necessário que as autoridades de concorrência demonstrem um efeito de exclusão concreto. Em todo o caso, o acórdão clarifica que só são abrangidos pelo artigo 102.0 TFUE comportamentos suscetíveis de ter um efeito de exclusão anti-concorrencial efetivo ou provável no mercado, entendimento que está em linha com a comunicação da Comissão de 2009.
No respeitante à gravidade e magnitude do efeito de exclusão, o Tribunal recusou a fixação de um limiar abaixo do qual os comportamentos das empresas dominantes não produzem efeitos sensíveis (de minimis), ao contrário da prática assente ao abrigo do artigo 101.0 TFUE, em que se presume que os acordos e práticas entre empresas com posições de mercado pouco significativas e não envolvam restrições graves não produzem um impacto sensível sobre a concorrência.
Com efeito, segundo o Tribunal a estrutura do mercado já se encontra enfraquecida pela presença da empresa dominante, pelo que qualquer restrição suplementar dessa estrutura concorrencial é suscetível de constituir uma exploração abusiva de posição dominante. O acórdão recordou ainda, neste contexto, a especial responsabilidade de uma empresa dominante de não prejudicar, através do seu comportamento, a concorrência no mercado relevante, ou seja, de não praticar comportamentos abusivos à luz do artigo 102.0 TFUE.
Conclusão
Embora sugerindo a necessidade da demonstração da probabilidade de um efeito de exclusão anti-concorrencial e de uma análise detalhada das características do mercado relevante para determinar a existência de um desconto abusivo, o acórdão Post Danmark II representa uma linha de continuidade com a jurisprudência restritiva anterior do Tribunal de Justiça em matéria de regimes de descontos standard (aplicáveis à generalidade dos clientes da empresa dominante), mantendo a desconfiança sobre descontos retroativos com períodos de referência “relativamente longos”.
Neste aspeto, esta decisão contrasta com o acórdão Post Danmark I, relativo a descontos seletivos (concedidos a clientes específicos)3, em que o Tribunal de Justiça havia reconhecido que o artigo 102.0 não visa assegurar a permanência no mercado de concorrentes menos eficazes que a empresa posição dominante.
O Tribunal não excluiu o critério do “concorrente igualmente eficiente” na análise de regimes de descontos à luz do artigo 102.0 TFUE, e a Comissão Europeia encontra-se auto-vinculada a utilizar tal critério nos termos da sua comunicação orientativa da Comissão Europeia de 2009, que permanece plenamente aplicável. Contudo, como recorda o Tribunal de Justiça esta comunicação não vincula as autoridades de concorrência e os tribunais nacionais, pelo que subsiste alguma incerteza na aplicação do artigo 102.0 TFUE (e das normas nacionais equivalentes) aos regimes de descontos praticados por empresas dominantes.
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1 Acórdão de 6 de Outubro de 2015, Post Danmark A/S c. Konkurrencerådet (Post Danmark II), proc. C-23/14.
2 Ac2009/C45/02.
3 Acórdão de 27 de março de 2012, Post Danmark A/S c. Konkurrencerådet, proc. C-209/10.