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01.07.2013

Regulamento de formação obrigatória dos Técnicos Oficiais de Contas contrário ao direito da concorrência

Introdução

Num acórdão de reenvio prejudicial recente (proc. C-1/12, Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas c. Autoridade da Concorrência, de 28 de Fevereiro de 2013, ainda não publicado), o Tribunal de Justiça da União Europeia clarificou que um regulamento adoptado por uma associação profissional que estabelece um sistema de formação obrigatória para os seus membros deve ser considerado uma decisão de associação de empresas nos termos do artigo 101.°, n.° 1 TFUE, e constitui uma restrição da concorrência proibida, na medida em que elimine a concorrência numa parte substancial do mercado relevante e imponha condições discriminatórias prejudiciais para os concorrentes.


O processo OTOC c. AdC

Em 2007, a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC), uma associação profissional de direito público com amplos poderes em matéria de deontologia, formação e disciplina, estabeleceu por regulamento um sistema de formação obrigatória para os técnicos oficiais de contas (TOC), em que estes deviam obter anualmente pelo menos 35 créditos de formação proporcionada pela OTOC ou por esta aprovada. Os organismos de formação que pretendessem oferecer “formação profissional”, também prestada pela OTOC, deveriam inscrever-se nesta Ordem, pagar uma taxa pela inscrição e por cada acção prevista, e cumprir os critérios definidos pela associação, que detinha tinha o poder para decidir sobre a aprovação das sessões. Pelo menos 12 créditos deviam ser obtidos a partir de “formação institucional”, que só poderia ser fornecida pela Ordem.

Na sequência de denúncias, a Autoridade da Concorrência decidiu em 7 de Maio de 2010 que, ao adoptar o regulamento em questão, a OTOC havia infringido os artigos 101.° e 102.° TFUE e as disposições equivalentes da Lei da Concorrência portuguesa (cfr. Newsletter de Junho de 2010). A Autoridade considerou que o regulamento constituía tanto uma decisão de associação de empresas como um abuso de posição dominante no mercado para a formação obrigatória para TOC em Portugal, e aplicou uma multa de €229.300 à Ordem. A decisão foi confirmada em recurso pelo Tribunal de Comércio de Lisboa no que respeita à violação do artigo 101.°, embora tenha rejeitado a alegada violação do artigo 102.°. A Ordem recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que suspendeu a instância e apresentou quatro questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.


Normas de direito público como decisão de associação de empresas

A qualificação dos TOC como «empresas» para os efeitos do artigo 101.° TFUE não suscitou controvérsia. No entanto a Relação de Lisboa tinha dúvidas sobre se um regulamento adoptado por uma ordem profissional, como a OTOC, que estava obrigada por lei a estabelecer um sistema de formação obrigatória para os seus membros, a fim de proporcionar aos cidadãos e às empresas serviços de contabilidade fiáveis e de qualidade, devia ser considerado como uma decisão de associação de empresas na acepção do artigo 101.°, n.° 1 TFUE, ou devia ser considerada, pelo contrário, uma decisão de autoridade pública, fora do âmbito desta disposição.

O Tribunal começou por recordar que, nos termos da jurisprudência Wouters1, as regras europeias de concorrência apenas não são aplicáveis a determinada actividade quando esta, tendo em conta a sua natureza, as regras a que está sujeita e o seu objecto, é estranha à esfera das trocas económicas. A Ordem alegou que o regulamento não tinha influência directa na actividade económica dos TOC. No entanto, o Tribunal constatou que o regulamento estabelecia as regras a ser cumprida por outros operadores que também desejavam prestar serviços de formação oferecidos pela OTOC, pelo que teve um impacto directo no mercado da formação obrigatória dos TOC.

O fato de a OTOC estar legalmente obrigada a estabelecer um sistema de formação obrigatória para os seus membros foi considerado irrelevante. As normas adoptadas por uma associação profissional conservam uma natureza de poder público, e estão fora do âmbito das regras da UE aplicáveis às empresas, apenas quando o Estado-Membro define os critérios de interesse público e os princípios essenciais a cumprir por tais normas, e conserva o poder para tomar decisões em última instância. Este não era o caso da OTOC, uma vez que a lei conferia à Ordem uma ampla margem de apreciação quanto aos princípios, condições e métodos a respeitar pelo sistema de formação obrigatória, e não previa as condições para o acesso de organismos de formação ao mercado da formação obrigatória dos TOC.

O Tribunal concluiu assim que o regulamento em causa deve ser considerado uma decisão de associação de empresas na acepção do artigo 101.º, n.º 1 TFUE.


Efeitos restritivos: eliminação da concorrência e condições discriminatórias

Respondendo à questão de saber se o regulamento impugnado violava o artigo 101.º do TFUE, o Tribunal observou à partida que o regulamento era susceptível de afectar o comércio entre Estados-Membros, pois não só era aplicável a todo o território nacional, mas, mais importante ainda, as disposições relativas ao acesso ao mercado de formação obrigatória pareciam ser de grande importância para empresas de formação de outros Estados-Membros decidirem sobre se entravam ou não no mercado Português.

O Tribunal reconheceu que o regulamento controvertido não tinha o objecto de restringir a concorrência, uma vez que procurava garantir a qualidade dos serviços oferecidos pelos TOC, ao prever um sistema de formação obrigatória. No entanto, o Tribunal concluiu que o normativo em questão produzia efeitos anticoncorrenciais em duas dimensões.

Em primeiro lugar, ao determinar que 12 dos 35 créditos anuais obrigatórios tinham que ser provir de “formação institucional”, que só poderia ser fornecida pelo OTOC, o regulamento reservava para a Ordem uma parte significativa do mercado relevante. Para além disso, cada programa de “formação profissional” (a categoria que estava aberta à concorrência de entidades formadoras privadas) devia durar mais de 16 horas, o que poderia ter o resultado de dissuadir organismos de formação alternativos que desejassem oferecer programas de formação de curta duração. Tais regras, portanto, eram susceptíveis de distorcer a concorrência no mercado, “afectando o jogo normal da oferta e da procura”.

Em segundo lugar, as condições de acesso ao mercado relevante (para organismos que não a OTOC) foram consideradas pelo Tribunal como sendo discriminatórias. Embora organismos privados tivessem de pedir aprovação específica de cada acção de formação, com pelo menos 3 meses de antecedência, e pagar uma taxa para cada acção, a OTOC (que também fornecia sessões de formação em concorrência com os organismos de formação) não estava sujeita a qualquer procedimento de aprovação.

Por outro lado, as regras que deveriam ser cumpridas pelas entidades formadoras estavam, de acordo com o Tribunal, redigidas em termos pouco precisos, o que poderia levar a OTOC (que detinha o poder de decidir unilateralmente sobre os pedidos de inscrição) a falsear a concorrência, favorecendo a formação por si organizada. A exigência de três meses de antecedência antes do início da sessão, também foi considerada como impedindo os organismos de formação alternativos de oferecerem, de imediato, acções de formação sobre temas atuais, ao mesmo tempo que lhes impunha “a divulgação sistemática das informações detalhadas relativas a qualquer acção prevista”.

Novamente evocando o acórdão Wouters, o Tribunal declarou claramente que a eliminação da concorrência para as sessões de treinamento com duração inferior a 16 horas não poderia “em nenhum caso” ser considerada como necessária para garantir a qualidade dos serviços dos TOC. Da mesma forma, os objectivos subjacentes às condições de acesso poderiam ser alcançados através de um sistema de monitorização com base em critérios claramente definidos, transparentes, não discriminatórios e que garantissem aos organismos de formação igualdade de acesso ao mercado relevante. Por estas razões, o Tribunal concluiu que o regulamento em questão era contrário ao artigo 101.°, n°. 1 TFUE.

O Tribunal de Justiça, finalmente, rejeitou o argumento de que o regulamento era justificado à luz dos artigos 101.°, n.° 3 e 106.°, n.° 2 TFUE. As restrições de concorrência impostas pelo regulamento pareciam ir além do que era necessário para garantir tanto as melhorias nos serviços dos TOC, nos termos do artigo 101.°, n.° 3, ou o desempenho de funções específicas atribuídas à OTOC, nos termos do artigo 106.°, n.° 2, mesmo que a formação obrigatória pudesse ser vista como uma actividade de interesse económico geral, o que não era claro para o Tribunal. O regulamento também tornava possível à OTC eliminar a concorrência numa parte substancial dos serviços de formação para os TOC, o que constituía um impedimento adicional à aplicação do artigo 101.°, n.°3.


Comentário

O pedido prejudicial no processo OTOC deu o Tribunal de Justiça oportunidade de recordar e articular princípios basilares do direito da concorrência, como o de que entidades de direito público que realizam actividades económicas estão sujeitas às regras do direito da concorrência, e o de que as associações profissionais, ao aprovarem regras de aplicação geral, devem tomar cuidado para garantir que essas regras não distorcem a concorrência, “afectando o jogo normal da oferta e da procura”, e garantem a “igualdade de oportunidades entre os diferentes operadores económicos”.

O Tribunal também confirmou que a excepção de interesse público prevista no acórdão Wouters está sujeita a um teste de proporcionalidade restritivo, à semelhança das apreciações realizadas nos termos dos artigos 101.°, n.° 3 e 106.°, n.°2, TFUE, as quais têm sido tornadas mais exigentes pela jurisprudência dos anos mais recentes.

O acórdão oferece elementos de reflexão às associações profissionais que organizam acções de formação obrigatória que podem ser ministradas por entidades privadas, o que é prática comum em muitos países, entre os quais Portugal, para as chamadas “profissões liberais”, como as de advogado, médico, farmacêutico, TOC, arquitecto, engenheiro, etc. Em particular, quando as próprias associações prestação de serviços de formação, ou seja, operam no mercado, as regras de acesso ao mercado (inclusivamente em matéria de procedimentos de aprovação), devem ser claras, objectivas, transparentes e não discriminatórias, e permitir um controlo subsequente – inclusivamente por um tribunal. O Tribunal exprimiu preocupação com a “igualdade de oportunidade” de terceiros no acesso ao mercado, e com aquisição sistemática, pela ordem em causa, de “informações detalhadas” (ou seja, informações comercialmente sensíveis) sobre todas as acções de formação propostas por fornecedores concorrentes.

O acórdão OTOC parece sugerir que, nesses casos, as funções “comercial” e “de regulamentação” da ordem profissional devem ser autonomizadas, para evitar que a associação tenha a capacidade de falsear a concorrência ao favorecer a formação por si organizada, uma linha de raciocínio que recorda o princípio da separação de actividades (unbundling) que tem sido desenvolvido e detalhado pela legislação da UE em determinadas indústrias de rede, tais como o sector de energia2.

Associações profissionais que estejam sujeitas a obrigações de direito público e desenvolvam simultaneamente actividades económicas, em (real ou potencial) concorrência com outros operadores económicos, deverão, portanto, adoptar especial cautela ao regulamentar e exercer actividades que são, ou não tem nenhuma razão para não ser, abertas à concorrência.

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1 Acórdão de 19 de Fevereiro de 2002, proc. C-309/99 Wouters e o. Colect. 2002 I-01577.
2 Cfr. inter alia as Directivas 2009/72/CE e 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Julho de 2009, sobre regras comuns para o Mercado interno da electricidade e do gás natural, respectivamente (JO L 211, 14.8.2009, p. 55–136).

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