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29.05.2018

Riscos acrescidos de extradição para os gestores de empresas envolvidas em cartéis: O Acordão Pisciotti

Introdução

Nos Estados Unidos e num conjunto crescente de outros países, como a Grã-Bretanha, a Dinamarca e o Brasil, a participação num cartel constitui uma infração criminal, punível com pena de prisão para os gestores das empresas envolvidas, ao contrário do que sucede em Portugal e na maioria dos Estados-Membros da União Europeia, em que releva apenas do domínio contraordenacional (embora, em Portugal, os gestores possam ser também individualmente responsabilizados pela Autoridade da Concorrência, com coima até 10% da respetiva remuneração anual).

Os gestores de empresas europeias (e portuguesas) não estão, todavia, isentos de risco: o envolvimento num cartel que produza também efeitos num país, em que o mesmo constitui crime, como os Estados Unidos, pode implicar o risco de extradição para esse país, mesmo que os comportamentos ilícitos, como reuniões ou outros contactos, tenham ocorrido noutra jurisdição, uma vez que no direito da concorrência vigora em geral a chamada “teoria dos efeitos”.

O risco de extradição passou a ser acrescido, de acordo com o recente acórdão Pisciotti do Tribunal de Justiça da União Europeia (1), para os cidadãos europeus que viajam em outros Estados-Membros da União Europeia com acordos de extradição em vigor com países terceiros, em particular com os Estados Unidos.


O caso Pisciotti

As autoridades norte-americanas iniciaram em 2007 um processo criminal contra Romano Pisciotti, nacional italiano, pela sua participação no designado “cartel internacional das mangueiras marítimas (marine hoses)”. Um mandado de detenção foi emitido em 2010, por um tribunal dos Estados Unidos, contra o Sr. Pisciotti, que passou a constar das listas da Interpol. Em 2013, ao viajar da Nigéria para Itália, foi detido por agentes da polícia federal alemã quando o seu voo fez escala em Frankfurt. Com base no acordo UE-EUA sobre extradição, Pisciotti foi extraditado para os Estados Unidos em 2014 (tendo aliás sido o primeiro cidadão europeu a ser extraditado para os EUA por infrações ao direito da concorrência), onde posteriormente se declarou culpado e foi condenado numa pena de prisão de dois anos e numa pena de multa.

Após a sua libertação em 2015, Pisciotti intentou uma ação de indemnização nos tribunais alemães contra o Estado alemão, por considerar que a Alemanha violou o direito da União Europeia e, em particular, o princípio geral da não-discriminação, ao ter recusado que beneficiasse da proibição de extradição prevista na constituição alemã para os cidadãos alemães.

No âmbito desse processo, e tendo dúvidas quanto à interpretação do direito da União, o Landgericht Berlin submeteu em 2016 um pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça.

O acórdão do Tribunal de Justiça

No seu acórdão do passado dia 10 de abril, o Tribunal de Justiça afirmou desde logo (ao contrário do defendido pelo Governo alemão) que a situação do Sr. Pisciotti está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, pois trata-se de um cidadão europeu, que ao fazer escala na Alemanha durante a sua viagem de regresso da Nigéria, exerceu o seu direito à livre circulação, consagrado no artigo 21.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), para além de o pedido de extradição ter sido efetuado no âmbito do Acordo entre a UE e os Estados Unidos em matéria de extradição. A circunstância de ter sido detido, quando estava apenas em trânsito na Alemanha não foi considerada relevante para o Tribunal.

Em segundo lugar, e relativamente à interpretação do princípio da não discriminação estabelecido no artigo 18.° do TFUE, o Tribunal de Justiça salientou que o Acordo de extradição UE-EUA permite, em princípio, que um Estado-Membro reserve, com fundamento em disposições de um acordo bilateral (como o referido acordo de extradição) ou em regras do seu direito constitucional, um tratamento especial aos seus nacionais, impedindo a sua extradição.

O Tribunal reconheceu que, neste caso, Pisciotti havia sido colocado numa situação de desigualdade de tratamento face a um cidadão alemão (que não teria sido extraditado por força do disposto na constituição alemã), e que tal desigualdade se traduziu numa restrição à sua liberdade de circulação.

No entanto, segundo jurisprudência assente, as restrições às liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado podem ser justificadas por razões de interesse legítimo, desde que proporcionais ao objetivo pretendido. Ora, de acordo com o Tribunal de Justiça, o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração, que se insere no âmbito da prevenção e combate à criminalidade, apresenta um caráter legítimo que pode, em princípio, justificar tal restrição. Por outro lado, o princípio da proporcionalidade é respeitado se o Estado, que apreciao pedido de extradição (neste caso a Alemanha) tiver previamente dado às autoridades competentes do Estado-Membro de que é nacional o referido cidadão (neste caso a Itália) a possibilidade de pedirem a sua entrega no âmbito de um mandado de detenção europeu, e este último Estado-Membro não tiver tomado medidas nesse sentido.

No caso em apreço, as autoridades consulares de Itália foram informadas da situação de Pisciotti antes da execução do pedido de extradição em causa, mas as autoridades judiciais italianas não emitiram um mandado de detenção europeu a seu respeito (provavelmente porque em Itália as infrações ao direito da concorrência são tipicamente punidas através de um regime sancionatório administrativo, como acontece em Portugal). O Tribunal de Justiça concluiu assim, que o artigo 18.° do TFUE deve ser interpretado como não objetando à extradição de R. Pisciotti para os Estados Unidos.


Comentário

Em rigor, o acórdão Pisciotti é aplicável apenas à ação de indemnização intentada contra a Alemanha pelo Sr. Pisciotti nos tribunais alemães, e que irá agora continuar os seus termos.

No entanto, o entendimento firmado pelo Tribunal de Justiça (que julgou o pedido na Grande Secção, reservada para os processos de maior complexidade e relevância) reveste-se de grande importância, pois não só torna claro que o direito da União é aplicável a um pedido de extradição para um Estado terceiro quando o cidadão em causa exerce a sua liberdade de circulação, mas também que as autoridades dos Estados-Membros devem trocar informações entre si no âmbito da figura do mandado de detenção europeu, que assume prioridade relativamente ao pedido do Estado terceiro.

Na prática, o acórdão Pisciotti reforça os poderes de investigação das autoridades norte-americanas por infrações ao direito americano da concorrência cometidas por cidadãos europeus, os quais passam a estar sujeitos ao risco de extradição nas suas deslocações através de outros Estados-Membros da União, se no direito nacional desses Estados o comportamento em causa for considerado um ilícito criminal.


E em Portugal?
Filipa Marques Júnior, Nuno Igreja Matos

Procurando refletir sobre o entendimento do Tribunal de Justiça no âmbito do ordenamento jurídico português, desde logo se verifica que o enquadramento legislativo nacional não difere significativamente das soluções em vigor na ordem jurídica alemã. De facto, Portugal prevê também na sua Constituição um direito fundamental dos seus cidadãos nacionais à não-extradição (artigo 33.°, n.° 1); mantém com os Estados Unidos um instrumento de cooperação bilateral sobre extradição – celebrado em complemento ao Acordo de extradição UE-EUA –; e incorpora na sua ordem jurídica, na qualidade de Estado-Membro, o regime do mandado de detenção europeu.

Neste contexto, a decisão do Tribunal de Justiça acaba por se projetar também, em abstrato, na aplicação do Direito português, com duas principais consequências.

Em primeiro lugar, o dever de Portugal de, perante um pedido de extradição formulado por Estado terceiro visando a extradição de cidadão de um outro Estado-Membro, dar conhecimento daquele pedido ao respetivo Estado-Membro de nacionalidade para que este, querendo, requeira a entrega do seu cidadão. Só desta forma – como se alcança do racional da decisão do Tribunal de Justiça – estará a ordem jurídica portuguesa a receber e tutelar o direito à liberdade de circulação no espaço europeu, permitindo assim, que esse cidadão europeu possa igualmente vir a beneficiar da proibição de extradição de nacionais eventualmente aplicável no seu Estado.

Em segundo lugar, e permanecendo no encalço do acórdão Pisciotti, uma vez efetuada essa comunicação ao Estado-Membro do cidadão sem que as autoridades desse Estado apresentem um pedido de entrega do visado, nada obstará a que o Estado requerido (neste caso, Portugal) decida pela entrega do cidadão em causa ao Estado terceiro, sem incorrer já em qualquer violação do direito à não discriminação do artigo 18.º do TFUE.

Ainda sobre o prisma do Direito português, importa salientar que a extradição de cidadão para um Estado terceiro (isto é, um Estado que não seja parte da União Europeia) dependerá sempre, e em primeira linha, da infração em causa estar prevista em ambos os Estados como punível com pena privativa da liberdade. Ora, a participação em cartel – que motivou o pedido de extradição analisado pelo Tribunal de Justiça – constitui, em Portugal, uma infração contraordenacional apenas punível com coima, pelo que nenhum pedido de extradição baseado unicamente numa atuação dessa natureza poderia ser deferido pelas autoridades portuguesas.

Em conclusão, e face ao exposto, no seu acórdão Pisciotti, o Tribunal de Justiça acaba assim por subscrever um entendimento, que salvaguardando o direito à liberdade de circulação como um dos princípios estruturantes do Direito da União Europeia – designadamente quando esse direito é exercido num Estado-Membro por um cidadão europeu com outra nacionalidade –, procura também tutelar o risco de impunidade criminal e fomentar a cooperação com Estados terceiros, designadamente ao admitir que os Estados-Membros extraditem um cidadão europeu de outro Estado, quando esse Estado de nacionalidade não formule pedido de entrega de um seu cidadão.

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(1) Acórdão de 10 de abril de 2018, Romano Pisciotti c. Bundesrepublik Deutschland, proc. C-191/16, EU:C:2018:222.

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