01.12.2012
TEDH confirma que o processo jusconcorrencial sancionatório tem natureza penal para efeitos do artigo 6.° da CEDH, que acolhe o direito ao processo justo e equitativo
Introdução
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) no acórdão de 27 de Setembro de 2011, Menarini Diagnostics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08, confirmou a aplicação do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Convenção), referente ao direito a um processo justo e equitativo, em processos jusconcorrenciais sancionatórios.
Saliente-se que o TEDH interpreta o artigo 6.° da Convenção em sentido amplo, reconhecendo a sua aplicação não só a processos formalmente qualificados como tendo uma natureza penal pelo direito interno das Partes Contratantes mas também a procedimentos qualificados pelo direito interno como disciplinares ou administrativos, dado que a disposição tem uma importância fundamental: “Numa sociedade democrática, no sentido da Convenção, o direito a uma administração da Justiça equitativa tem um lugar tão proeminente que uma interpretação restritiva do artigo 6.°, n.° 1 não corresponderia ao objectivo da referida norma”1.
Enquadramento do Processo
A Menarini é uma empresa farmacêutica sedeada em Itália. Em 2001, a Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (AGCM), autoridade italiana da concorrência investigou a empresa por esta ter alegadamente violado as regras italianas de concorrência. Por decisão de 30 de Abril de 2003, a AGCM aplicou à empresa uma coima de 6 milhões de euros por fixação de preços e por repartição do mercado nacional de testes de diagnóstico para diabéticos com empresas concorrentes. Os recursos das empresas contra a decisão da AGCM foram considerados improcedentes e rejeitados pelas instâncias judiciais italianas. Com fundamento no artigo 6.° da Convenção, relativo ao processo justo e equitativo, a Menarini apresentou uma queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sustentando que em Itália não tinha tido acesso a um tribunal que pudesse rever integralmente, em questões de facto e de direito, a decisão administrativa da AGCM, dado que os tribunais italianos apenas podiam supostamente exercer um controlo de legalidade sobre a decisão. A empresa, com base neste enquadramento factual e jurídico, sustentou na sua queixa que a República Italiana, na qualidade de Parte Contratante da Convenção tinha, assim, actuado em desconformidade com o respectivo artigo 6.°.
O Tribunal Europeu confirma a aplicação do artigo 6.º a processos jusconcorrenciais sancionatórios
O acórdão do TEDH de 27 de Setembro de 2011 confirmou que o procedimento jusconcorrencial desencadeado em Itália contra a empresa tem uma natureza penal para efeitos do artigo 6.° da Convenção. Os critérios tomados em consideração pelo tribunal para determinar se o procedimento tinha uma natureza penal, com base em condições já anteriormente firmadas pelo tribunal na sua jurisprudência, foram: (i) a qualificação da infracção pela legislação italiana; (ii) a natureza da infracção; e (iii) a natureza e gravidade da sanção aplicada. A violação das regras de direito da concorrência era formalmente qualificada pelo direito italiano como tendo uma natureza administrativa e não uma natureza penal, mas este critério, não foi considerado decisivo para o TEDH, mas tão-só orientativo. Quanto à natureza da infracção jusconcorrencial prevista no ordenamento jurídico italiano, o TEDH salientou que as regras de direito da concorrência afectam transversalmente os interesses gerais dos agentes económicos, tendo a respectiva aplicação já sido considerada como beneficiando de natureza penal para efeitos de aplicação do artigo 6.° da Convenção. Para além disso, atendendo ao montante efectivo da coima aplicada à empresa (6 milhões de euros) e à circunstância de a sanção aplicada ter também um carácter dissuasor e de prevenção geral, levarem o TEDH a determinar pelo que o processo que correu termos contra a empresa tem uma natureza penal para efeitos de aplicação do artigo 6.° da Convenção.
Neste particular, e tal como o Tribunal já teve oportunidade de salientar no caso Engel e outros c. Holanda, caso as Partes Contratantes da Convenção tivessem a possibilidade de, ao abrigo da sua discricionariedade doméstica, qualificar uma infracção como sendo disciplinar ao invés de criminal, ou de acusar o autor de uma infracção “mista” na vertente disciplinar e não na vertente criminal, a operacionalização e materialização dos princípios constantes do artigo 6.° da Convenção ficaria subordinada à vontade soberana do Estado. Tal latitude poderia levar a um resultado incompatível com a finalidade e o objectivo da Convenção.2
Apesar do TEDH ter decidido que a queixa da Menarini preenchia o critério da admissibilidade, dado ser aplicável ao processo que correu termos em Itália o artigo 6.° da Convenção, o tribunal entendeu que a disposição da Convenção não tinha sido infringida pelo Estado Italiano, dado que o processo da Menarini tinha sido analisado no ordenamento jurídico doméstico italiano por um tribunal com plenos poderes para rever a decisão da AGCM.
Comentário
O acórdão Menarini do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao reconhecer a aplicação do artigo 6.º da Convenção e da correlativa e seminal jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem referente ao direito ao processo justo e equitativo em processo jusconcorrencial sancionatório, é um passo muito positivo para o reforço das garantias de defesa das empresas.
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1 Decisão Delcourt c. Bélgica, de 17 de Janeiro de 1970, § 25.
2 Decisão Engel e outros c. Holanda, de 8 de Junho de 1976, § 81.