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01.04.2014

Tribunal de Justiça restringe acesso a documentos em processos de práticas restritivas da concorrência

O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu recentemente restringir o acesso a documentos dos processos antitrust da Comissão Europeia por parte de terceiros (como empresas lesadas) ao abrigo das regras gerais sobre acesso aos documentos administrativos das Instituições da União, anulando um acórdão do Tribunal Geral quanto a um pedido de acesso aos documentos do processo da Comissão relativo ao cartel dos comutadores com isolamento a gás1. Em todo o caso, é muito provável que no futuro próximo as entidades terceiras prejudicadas por condutas ilícitas, como cartéis, passem a dispor de direitos específicos de acesso aos documentos na posse das autoridades de concorrência, no âmbito da nova diretiva sobre ações de indemnização em matéria de concorrência.


O Regulamento Transparência e o pedido de acesso aos documentos

Na sequência de uma decisão da Comissão que em 2007 condenou várias empresas internacionais de componentes elétricos (como a Siemens ou a ABB) pela participação num cartel no mercado dos comutadores com isolamento a gás, a EnBW, empresa alemã de distribuição de energia e cliente das empresas participantes no cartel, solicitou à Comissão acesso aos documentos do processo, com vista a fundamentar uma ação judicial de indemnização, a intentar contra aquelas empresas nos tribunais nacionais, pelos prejuízos causados pelas práticas concertadas de fixação de preços e repartição de mercados, invocando, para o efeito, o direito de acesso a documentos das instituições da União Europeia, consagrado no Regulamento (CE) n.º 1049/2001 (“Regulamento de Transparência”).

O Regulamento de Transparência estabelece o direito geral de acesso a documentos das instituições europeias por parte do público. Pretendendo o diploma garantir um acesso aos documentos das instituições “o mais amplo possível”, as exceções à regra geral de acessibilidade dos documentos das instituições estão definidas taxativamente, e são normalmente aplicadas de forma restritiva por parte dos tribunais europeus. As exceções consagradas permitem às instituições recusar o acesso aos documentos cuja divulgação pudesse prejudicar a proteção de, entre outros:

(i) interesses comerciais das pessoas singulares ou coletivas,
(ii) processos judiciais e consultas jurídicas; e
(iii) objetivos de atividades de inspeção, inquérito e auditoria, exceto quando um interesse público superior imponha a divulgação.

A Comissão recusou em junho de 2008 o acesso aos documentos no processo (incluindo os relativos a pedidos de clemência pelas empresas visadas), invocando que as categorias de documentos solicitadas pela EnBW se encontravam abrangidas pelas exceções previstas no Regulamento Transparência, designadamente as relativas à proteção dos segredos de negócios das empresas visadas e às atividades de inquérito da Comissão. Contudo, o Tribunal Geral anulou, em maio de 2012, a decisão da Comissão, por concluir que esta não podia presumir a aplicabilidade das exceções, e deveria ter feito uma análise concreta da sua aplicação a cada documento solicitado. Discordando deste entendimento, a Comissão recorreu para o Tribunal de Justiça.


A decisão do Tribunal de Justiça

O Acórdão do Tribunal aborda assim, essencialmente, a questão de saber se a Comissão, ao recusar o acesso aos documentos contantes de processos de violação do artigo 101.º TFUE por parte de terceiros lesados pela conduta ilegal (para efeitos de prova de ações de indemnização), pode fazê-lo com base numa presunção geral de que todos estes documentos beneficiam das exceções do Regulamento, ou se, pelo contrário, terá de proceder a uma apreciação concreta e individualizada de cada documento para aferir da aplicabilidade das exceções.

Segundo o Tribunal, a Comissão tem o direito de presumir que a divulgação destes documentos prejudica, em princípio, a proteção dos interesses comerciais das empresas envolvidas nestes processos, bem como a proteção dos objetivos de atividades de inquérito relativas a esses processos. O Tribunal observou também que os processos antitrust são regulados por regras específicas que prosseguem, neste matéria, objetivos diferentes dos prosseguidos pelo Regulamento de Transparência, devendo a Comissão assegurar o respeito dos direitos de defesa de que beneficiam as partes implicadas e:

  • tratamento diligente das queixas, assim como
  • respeito pelo sigilo profissional.

O Tribunal de Justiça concluiu assim que existe uma presunção geral de que os documentos nos processos da Comissão em aplicação do artigo 101.º TFUE estão abrangidos pelas exceções previstas no Regulamento de Transparência (à semelhança da sua jurisprudência anterior em matéria de auxílios de Estado e de concentrações), pelo que a Comissão pode recusar o acesso aos mesmos documentos, exceto se o terceiro ilidir a presunção e demonstrar que, relativamente a cada documento em concreto, existe um interesse público superior imponha a divulgação.


Comentário

No caso específico do acesso a documentos relativos a processos de cartel, verifica-se uma tensão entre o direito geral de acesso a documentos das Instituições, consagrado do Regulamento de Transparência (que tem especial acuidade no presente caso, visto destinar-se ao exercício do direito à indemnização por lesados em processos de cartel, o qual é reconhecido por jurisprudência assente do próprio Tribunal), e, por outro lado, a necessidade de garantir a efetividade do procedimento de clemência e, em última análise, das investigações da Comissão Europeia em matéria de cartéis.

O procedimento de clemência, através do qual as empresas participantes em cartel obtêm dispensa ou redução de coima caso revelem a existência do ilícito à Comissão, é um instrumento fulcral na investigação de cartéis, por permitir às autoridades de concorrência conhecer a existência de acordos ou práticas concertadas, que de outro modo seriam dificilmente descobertos. Assim, comprometer a confidencialidade dos documentos entregues em pedidos de clemência poderia implicar uma perda de confiança das empresas neste procedimento e, por conseguinte, uma diminuição da capacidade de investigação de cartéis por parte da Comissão.

A orientação do Tribunal de Justiça foi, claramente, no sentido de afastar a aplicação do regime do Regulamento de Transparência (aplicável à generalidade dos documentos das instituições europeias), com vista a salvaguardar a proteção do procedimento de clemência.

Em todo o caso, embora à primeira vista venha dificultar o acesso a documentos por parte de entidades lesadas por cartéis, a decisão do Tribunal terá porventura sido facilitada por ser público que a futura diretiva europeia sobre ações de indemnização por infrações ao direito da concorrência consagrará o direito a obter os elementos de prova necessários para provar a existência do ilícito, tanto das empresas participantes como das próprias autoridades de concorrência (não se excluindo mesmo, em certos casos, a divulgação de pedidos de clemência ou propostas de transação). O Parlamento Europeu e o Conselho chegaram recentemente a um acordo político neste domínio, sendo expectável que a nova diretiva seja aprovada nos próximos meses2.

Este artigo foi escrito em coautoria com a advogada Leonor Bettencourt Nunes.

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1 Acórdão de 27 de março de 2014 no proc. C-365/12 P Comissão/EnBW Energie Baden-Württemberg e acórdão do Tribunal Geral de 22 de maio de 2012 no proc.T-344/08, EnBW/Comissão.
2 Cfr. discurso do Comissário Almunia de 3 de abril de 2014, SPEECH/14/281, e a aprovação da proposta de directiva em 1.ª leitura pelo Parlamento Europeu de 17 de Abril de 2014.

 

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