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29.05.2018

Uma União fundada no direito: a independência dos tribunais enquanto princípio constitucional da União Europeia

Em 27 de fevereiro de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão no processo C-64/16, Associação Sindical dos Juízes Portugueses c. Tribunal de Contas (1), com consequências e implicações muito significativas, que extravasam as circunstâncias do caso concreto.

 

Como alguns comentadores já afirmaram, este acórdão não será tanto sobre a redução temporária das remunerações dos juízes portugueses no quadro do programa de assistência financeira, que se destinou a corrigir o défice excessivo do Estado português, mas antes sobre as medidas de reforma do sistema judicial adotadas nos últimos anos em países como a Hungria ou a Polónia e a sua apreciação à luz do princípio fundamental do Estado de Direito.

Recorde-se em todo o caso, que no referido processo, que corre em Portugal perante o Supremo Tribunal Administrativo (STA), a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), em representação de magistrados do Tribunal de Contas, intentou uma ação administrativa especial, requerendo a anulação dos atos administrativos de processamento dos vencimentos daqueles magistrados, referentes ao mês de outubro de 2014 e aos meses seguintes, que haviam sido adotados ao abrigo das disposições da Lei n.º 75/2014, de 12 de setembro, que estabeleceu os mecanismos das reduções remuneratórias temporárias no setor público em Portugal, no contexto da aplicação do programa de assistência financeira acordado em 2011 entre Portugal, a União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.

Na referida ação administrativa, para além da anulação dos atos em causa, requeria-se a restituição das retenções salariais efetuadas, acrescidas de juros moratórios à taxa legal, bem como o reconhecimento do direito dos interessados em auferir a totalidade da sua remuneração.

Como fundamento do pedido, a ASJP sustentou que as medidas de redução salarial violavam o princípio da independência judicial, consagrado não apenas na Constituição da República Portuguesa, mas também no direito da União Europeia, em especial, no artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do Tratado da União Europeia (TUE) e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta).

No despacho de reenvio, o STA indicou que as medidas em causa se inseriam no contexto do imperativo de redução do défice excessivo da República Portuguesa, nos termos do direito da União, e da execução do programa de assistência financeira a Portugal aprovado pela União Europeia. Sublinhou no entanto, que a margem de apreciação que deve ser reconhecida aos poderes públicos para, naquele contexto, definir a política orçamental não os desobriga de respeitar os princípios gerais do direito da União, entre os quais o da independência dos tribunais, que se aplica tanto aos tribunais da União, como aos tribunais dos Estados-Membros, já que a tutela judicial efetiva dos direitos que decorrem da ordem jurídica da União é assegurada, em primeira linha, pelos tribunais nacionais, em conformidade com o artigo 19.º, nº 1, segundo parágrafo, do TUE.

Ora, na medida em que, de acordo com o STA, a efetividade da tutela judicial depende do respeito das garantias de imparcialidade e de independência dos tribunais, as quais por seu turno decorrem, desde logo, do estatuto dos magistrados que os compõem, incluindo a respetiva remuneração, assim sendo a dúvida de interpretação que foi colocada ao TJUE teve por objeto a questão de saber se o princípio da independência dos tribunais, decorrente das disposições do TUE e da Carta acima referidas, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a medidas de redução remuneratória como aquelas a que os magistrados foram sujeitos em Portugal de forma continuada e por imposição unilateral doutros poderes/órgãos de soberania (o legislativo e o executivo)

A resposta dada pelo TJUE à questão que lhe foi colocada, confirmando a compatibilidade das medidas adotadas em Portugal com o direito da União, não pode ser considerada surpreendente, já que o TJUE pronunciou-se nesse sentido depois de terconstatado que as medidas de redução remuneratória que afetaram os magistrados em causa foram adotadas no âmbito da correção de uma situação de défice excessivo do Estado português e no contexto de um programa de assistência financeira da União, que essas medidas tinham um alcance limitado e natureza temporária (aliás, quando o acórdão foi proferido já tinham sido eliminadas) e tinham caráter geral, aplicando-se não só aos magistrados, mas em geral a todos os titulares de cargos públicos, dos poderes legislativo, executivo e judicial, assim como aos funcionários públicos e a todas as pessoas que exerciam funções no setor público. Assim, o TJUE concluiu que as medidas em causa não visavam em especial os magistrados, inserindo-se antes no âmbito geral das medidas orçamentais de correção dos desequilíbrios financeiros ocorridos em Portugal, em particular quanto ao défice do orçamento do Estado, pelo que não se podia considerar que pusessem em causa a independência dos tribunais.

Com efeito, não obstante a circunstância de a aprovação das medidas concretas de redução temporária das remunerações do setor público em Portugal, não decorrer de um compromisso específico aprovado pela União ou assumido pelo Governo português no quadro do programa de assistência financeira, o TJUE considerou suficiente, para estabelecer uma conexão relevante com a ordem jurídica da União Europeia e, consequentemente, estabelecer a sua própria competência, o facto de a legislação em causa ter sido aprovada pelas autoridades portuguesas tendo em vista a correção da situação de défice excessivo constatada pelas instituições da União nos termos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

Foi isso que permitiu afastar a eventual qualificação dos factos como “situação puramente interna” (caso em que o STA teria que fazer o controlo de legalidade dos atos impugnados exclusivamente à luz dos princípios e regras constitucionais nacionais) e que levou também o TJUE a afastar a exceção de inadmissibilidade de reenvio suscitada pela Comissão, tendo considerado que, embora sumárias, as explicações do STA sobre a relevância, para a decisão da causa, das disposições do direito da União Europeia (cuja interpretação era solicitada) eram suficientes para que o TJUE compreendesse as razões que levavam o órgão jurisdicional nacional a solicitar a sua interpretação. Foi este o contexto processual que permitiu ao TJUE focar a sua atenção no artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE e extrair do mesmo consequências de largo alcance.

Para interpretar esta disposição – nos termos da qual, recorde-se, «[o]s Estados-Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo Direito da União» – o TJUE recorreu ao elemento sistémico. Por um lado, conjugou a sua leitura com a dos artigos 2.º e 4.º do mesmo Tratado, por outro, sublinhou a diferença de redação em comparação com o artigo 51.º, n.º 1, da Carta.

Com efeito, quanto a este último aspeto, enquanto o artigo 51.º, n.º 1, estabelece que a Carta tem por destinatários os Estados-Membros «apenas quando apliquem o direito da União» – o que significa que os direitos fundamentais consagrados na Carta, designadamente o direito à tutela judicial, previsto no artigo 47.º, só são invocáveis contra os Estados-Membros quando ocorra uma situação de aplicação de disposições concretas do direito da União pelas autoridades nacionais – o artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE impõe aos Estados-Membros, de forma mais ampla, o dever de instituir na ordem jurídica interna vias de recurso que assegurem uma tutela judicial efetiva «nos domínios abrangidos pelo direito da União».

Esta distinção, leva o TJUE a afastar a relevância do artigo 47.º da Carta para a solução do caso concreto – pelo menos implicitamente, já que o acórdão é parco em explicações nesta matéria – e a focar-se exclusivamente no artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE.

O alcance desta disposição é analisado à luz do artigo 2.º, que consagra os valores em que se funda a União, designadamente os valores do Estado de Direito, assim como do artigo 4.º, n.º 3, relativo ao princípio da cooperação leal.

E isto leva o TJUE a considerar que a exigência de consagração de uma tutela jurisdicional efetiva, enquanto princípio geral do direito da União assente nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, é inerente aos valores do Estado de Direito e impõe-se não só à União e às suas instituições, designadamente quanto aos termos em que está organizado e estruturado o seu sistema judicial, mas também aos Estados-Membros «nos domínios abrangidos pelo direito da União».

Daqui decorre, em conjugação com o princípio da cooperação leal do artigo 4.º, n.º 3 – que, entre outros deveres, impõe aos Estados-Membros o dever de tomarem «todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados» – que na configuração das vias de recurso necessárias para assegurar, no plano nacional, uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, os Estados-Membros têm a obrigação de garantir orespeito pelas exigências próprias dos valores do Estado de Direito, a começar pela independência judicial.

E isto é tanto mais importante quanto os órgãos jurisdicionais nacionais são os “tribunais comuns” do direito da União, incumbidos de garantir a aplicação do mesmo nas ordens jurídicas de cada Estado-Membro, em cooperação com o TJUE nos termos do mecanismo do reenvio prejudicial consagrado no artigo 267.º do TFUE.

E para que um tribunal, ou qualquer outra instância, possa ter a qualificação de órgão jurisdicional nacional, para efeitos da aplicação do artigo 267.º do TFUE, é necessário que preencha todas as garantias inerentes à existência de uma tutela judicial efetiva, a saber: (i) origem legal; (ii) caráter permanente; (iii) jurisdição vinculativa; (iv) natureza contraditória do processo; (v) aplicação de regras de direito; e, (vi) independência.

Por seu turno, as exigências de independência, que aliás se aplicam nos mesmos termos aos tribunais da União e aos tribunais dos Estados-Membros, implicam, para além de garantias quanto à inamovibilidade dos seus membros, que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem.

Para além disto, sublinha o TJUE, o auferimento por parte dos membros dos órgãos jurisdicionais de uma remuneração de nível adequado à importância das funções que exercem constitui também uma garantia inerente à independência judicial.

O TJUE enuncia assim, de forma muito clara e abrangente as obrigações que decorrem para os Estados-Membros do dever de estabelecerem «as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo Direito da União», tal como consagrado no artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, em articulação com os artigos 2.º e 4.º do mesmo Tratado.

Assim, sem prejuízo do mecanismo de controlo político previsto no artigo 7.º do TUE, quanto ao respeito pelos valores referidos no respetivo artigo 2.º, designadamente os valores do Estado de Direito, este acórdão marca uma viragem de longo alcance no plano constitucional, pois lança as bases de um possível controlo judicial, nos termos do regime da ação por incumprimento prevista nos artigos 258.º e 259.º do TFUE, do cumprimento dos deveres que decorrem para os Estados-Membros do artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, quanto à consagração de um regime jurídico que assegure, na ordem jurídica nacional, uma tutela judicial efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União.

Sabendo-se que hoje o direito da União toca, com maior ou menor intensidade consoante o alcance das competências que os Tratados atribuem às suas instituições, praticamente todos os domínios de ação das autoridades públicas, compreende-se que a Comissão Europeia, assim como os Estados-Membros, passam a dispor de um instrumento de controlo judicial muito poderoso relativamente a comportamentos de Estados-Membros que porventura violem os deveres impostos pelo referido artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, do TUE, quanto à consagração de uma tutela judicial efetiva nos seus ordenamentos internos, incluindo as garantias inerentes à independência dos tribunais.

O “braço de ferro” entre a Comissão, a Polónia e a Hungria, a propósito de medidas polémicas de reforma dos respetivos sistemas judiciais, que a Comissão questiona, poderá assim vir a ter novos desenvolvimentos à luz das perspetivas processuais que agora se abrem.

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(1) Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses c. Tribunal de Contas, C-64/16, EU:C:2018:117

 

[Este artigo é parte integrante da Newsletter ML de Direito Europeu e Direito da Concorrência - n.º 28, maio 2018]

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