25.10.2017 IMGT • Gonçalo Almeida Ribeiro
A Liberdade Pública: Natureza e Fundamentos da Liberdade de Expressão
Intervenção de Gonçalo Almeida Ribeiro, Juiz do Tribunal Constitucional, no âmbito da conferência LIBERDADES DE IMPRENSA E DE EXPRESSÃO: QUE PAPÉIS, QUE EFEITOS, QUE FRONTEIRAS E LIMITES?, do Instituto Miguel Galvão Teles (apenas em português).
A Liberdade Pública: Natureza e Fundamentos da Liberdade de Expressão
Gonçalo Almeida Ribeiro
Agradeço muito o convite para estar aqui. Aceitei-o por três razões, cada uma das quais condição suficiente para tanto.
O primeiro é a fonte do convite: ele proveio do meu querido amigo Martim Krupenski.
A segunda razão é o sentido do convite, que me associa a uma homenagem permanente e institucional a Miguel Galvão Teles, de quem se pode bem dizer – parafraseando palavras de Antunes Varela, por ocasião da morte de outro grande jurista português, João Baptista Machado – que foi «[u]m príncipe iluminado das letras jurídicas portuguesas[...]». Tive a honra de conhecer o Dr. Miguel Galvão Teles na fase final da vida dele. Um dia, acabado de chegar de um extenso percurso académico nos Estados Unidos da América, fiz uma apresentação no âmbito do “Seminário Permanente de Filosofia e Direito”, uma agremiação que se reunia na biblioteca do Dr. Sousa e Brito, outro grande vulto da cultura jurídica portuguesa contemporânea, amigo e condiscípulo de Miguel Galvão Teles. Fiquei muito surpreendido quando, preparado para falar a três ou quatro amigos sobre o papel do direito na ética de Kant, apareceu o Dr. Miguel Galvão Teles, que tinha acabado de ler 60 páginas da minha dissertação de doutoramento, páginas essas que eu tinha pedido para serem distribuídas aos membros do seminário – naturalmente reconfortado pela implausibilidade de que alguém as lesse. Tomei contacto nessa ocasião, pela primeira vez, com a generosidade e a ferocidade intelectual daquele espírito superior; e, durante cerca de um ano, que foi o último ano da sua vida, ele deu-me a honra de ler trabalhos e assistir a apresentações minhas.
A terceira razão, que é a mais prosaica, é a oportunidade do convite: ele permite-me estar aqui a falar sobre temas muito interessantes e libertame transitoriamente do encargo quotidiano de verificar se a questão de constitucionalidade que é colocada por um qualquer recorrente no requerimento de interposição de um qualquer recurso de constitucionalidade foi, de forma processualmente adequada, suscitada no impulso processual que originou a prolação da decisão recorrida. Como devem calcular, a tarefa que me cabe esta manhã é menos enfadonha.
O meu tema é a liberdade de expressão. Eu não vou falar nem sobre a liberdade de imprensa, nem sobre a liberdade de informação. São duas liberdades que têm, como disse o Dr. Rui Patrício, afinidades importantes com a liberdade de expressão, mas que colocam, no meu entender, problemas específicos. Vou falar, exclusivamente, sobre liberdade de expressão. E a minha “tese” é muito simples, embora provocadora, e em parte contrária ao que disse o Dr. Rui Patrício na sua intervenção. A minha “tese” é a de que a liberdade de expressão é uma liberdade singular, primordial e tendencialmente absoluta na arquitetura constitucional do Estado de Direito democrático; é talvez a única liberdade que é tendencialmente absoluta. No essencial, devo dizer-vos que não venho fazer muito mais do que reiterar, sem particular brilho ou talento, os argumentos de Stuart Mill no segundo capítulo do famoso ensaio que publicou em 1859, On Liberty. Não há, pois, nada de particularmente original no que eu vou dizer
O meu ponto de partida é o seguinte: não será muito polémica a afirmação de que a liberdade de ação é um bem. Por “liberdade de ação” eu refiro-me à liberdade de circular, de trabalhar, de consumir, de empreender, de apropriar etc. A liberdade de ação é um bem. Se a minha ação não causar prejuízo a outrem, não temos dificuldade em reconhecer que é um bem que eu goze dessa liberdade de agir. É evidente que há exceções. Pode considerar-se que há determinadas pessoas, nomeadamente os menores e os “desassisados”, como se designavam antigamente os interditos por anomalia psíquica, que são sistematicamente incapazes de se governarem. E pode haver determinadas categorias de ações ou de comportamentos que refletem escolhas erradas, como a prestação de serviços como objeto do sadismo alheio ou a alienação onerosa de órgãos; e pode ser – embora esse seja outro juízo – que existam boas razões para proibir esse tipo de comportamentos. Porém, em princípio, num Estado de Direito democrático, a liberdade de ação é um bem.
A liberdade de ação é um bem, mas ela constitui também uma ameaça para terceiros: o seu exercício pode lesar bens que são tão fundamentais ou valiosos, no plano abstrato, quanto essa liberdade – bens como a vida, a integridade física, a propriedade ou a dignidade social dos visados. Nenhum de nós, tenho a certeza, gostaria de viver numa sociedade que tolerasse o homicídio, o furto, a ofensa corporal ou a segregação racial nas escolas públicas, para dar exemplos óbvios. Um tal estado de coisas nem sequer constitui algo que se possa com propriedade designar por “sociedade”.
Num Estado de Direito, temos a expectativa natural de que o Estado tenha a capacidade de arbitrar este conflito perene entre a liberdade individual, por um lado, e a tutela daqueles bens ou interesses que são sistematicamente ameaçados pelo seu exercício. Um Estado de Direito não é nem um estado de anarquia (o estado de anarquia que foi, de forma particularmente célebre e plástica, resumida pelo Hobbes, quando escreveu no Leviathan que no estado de natureza a vida humana é “solitary, poor, brutish, nasty, and short”), nem um Estado totalitário, em que a liberdade individual, a liberdade de ação, é obliterada pelo poder público ou subsumida no interesse coletivo. O Estado de Direito democrático e, em particular, a jurisdição constitucional, devem ser capazes de resolver as tensões entre a liberdade de ação e aqueles bens, interesses ou direitos de terceiros que são ameaçados pelo seu exercício. Na verdade, a conceção moderna dos fundamentos do poder político acolhe a ideia de que a principal função do Estado é criar, aplicar e executar leis que permitam precisamente arbitrar o conflito entre a liberdade individual e aqueles bens, direitos ou interesses que são ameaçados pelo seu exercício.
Ora, esta conceção de que é sempre necessário ponderar a liberdade com outros valores é uma conceção que não se aplica – seguramente, não se aplica nesses exatos termos – à liberdade de expressão. E não se aplica em virtude de três diferenças fundamentais da liberdade de expressão relativamente àquilo a que eu chamei “liberdade de ação”.
A primeira diferença – e eu peço desculpa por usar este palavrão – é uma diferença de ordem “ontológica”, que se prende com a natureza do objeto sobre o qual incide a liberdade. A ação pertence à ordem material, no sentido em que constitui um evento situado no espaço e no tempo e que é, por isso, irreversível. As ações de agredir uma pessoa, de incendiar um automóvel, de comer um prato de lentilhas ou de fazer uma promessa, são ações irreversíveis. Por vezes é possível praticar uma ação de sentido contrário que destrói ou anula os efeitos da ação anterior. Um muro construído ilegalmente pode ser demolido. Na maioria dos casos, nem isso é possível, de modo que nos casos em que é praticada uma ação indesejável, o mais que se pode fazer é reparar o prejuízo, através de um sucedâneo de qualquer espécie – em princípio, um sucedâneo patrimonial. Pelo contrário, as ideias que se expressam no espaço público não pertencem à ordem material. Elas pertencem àquilo a que podemos chamar ordem do espírito, na medida em que não são eventos situados no espaço e no tempo. São representações mentais que podem ser modificadas, refutadas ou desmentidas a qualquer momento através da operação normal das faculdades intelectuais. É muito diferente dar um par de estalos a uma pessoa e afrontar as suas convicções religiosas. Este é o primeiro aspeto, de natureza “ontológica”: a diferença irredutível entre ação e ideia.
A segunda diferença é de ordem “axiológica”. E aqui entramos no coração do argumento de Stuart Mill. Como eu disse, a liberdade da ação é um bem pessoal, um bem para o próprio, mas implica, com frequência assinalável, um prejuízo, atual ou potencial, para terceiros. Isto não acontece com a liberdade de expressão, com a liberdade de expressar opiniões. E porquê? Por uma razão que o Mill, com grande brilho, foi capaz de sintetizar. Quando eu exprimo uma opinião, por definição dirigida a terceiros (a liberdade de expressão é, por definição, uma liberdade pública, é uma liberdade que implica a interação, através da interlocução, com o outro), há três possibilidades: i) ou a minha opinião é “verdadeira”, e aquele a quem a dirijo terá a oportunidade de substituir uma convicção falsa por uma convicção verdadeira e, portanto, ficará melhor do que estava antes de eu exprimir a minha opinião; ii) ou a minha opinião é “falsa”, e o facto de eu a exprimir dará oportunidade àquela pessoa que tem uma convicção verdadeira, diferente da minha, de poder reforçar a convicção na veracidade da sua opinião; iii) ou – o que será mais frequente – a minha opinião é “parcialmente verdadeira e parcialmente falsa”, e ao exprimi-la, dou oportunidade a quem também tem uma convicção parcialmente verdadeira e parcialmente falsa de aproveitar aquilo que eu digo para aprimorar o seu pensamento. É por isso que, como diz Mill numa das frases mais notáveis de On Liberty, «[a]inda que toda a humanidade menos uma pessoa subscreva uma opinião, deve haver um direito absoluto dessa pessoa a exprimir no espaço público a sua opinião.». Porquê? Não porque seja um bem para essa pessoa, como a liberdade de ação, mas sim porque é um bem para o público, porque permitirá sempre que uma maioria, por mais esmagadora que seja, tenha a possibilidade de proceder à revisão crítica das suas convicções.
Na verdade, a justificação das nossas convicções depende do preenchimento de duas condições: em primeiro lugar, a disponibilidade regular e a capacidade intelectual de defendermos a nossa opinião da arguição alheia, por mais absurdas que as suas razões nos pareçam; e, em segundo lugar, o reconhecimento de que há uma diferença significativa entre uma opinião verdadeira e a respetiva compreensão – há uma diferença significativa, por exemplo, entre regurgitar a tabuada e compreender os seus fundamentos aritméticos. Nos domínios em que a opinião pública partilha um consenso alargado, existe a tendência de as convicções se terem tornado dogmas inertes, o que levou Mill a defender que nesses casos deve ser “fabricado o dissenso” para assegurar o “exercício dos músculos mentais” e a “saúde intelectual da opinião pública”. Aqui reside a singularidade axiológica da liberdade de expressão. Ao passo que a liberdade de ação é um bem pessoal, que representa normalmente um prejuízo, ou pelo menos uma ameaça, para terceiros, a liberdade de expressão é um bem público. Ela é um valor para todos: para aquele que a exerce, certamente, mas sobretudo para aqueles que são atingidos na sua esfera pelo seu exercício.
A terceira diferença é de ordem política. A política, numa definição muito simples, diz respeito à forma como uma pluralidade de pessoas condenadas a viverem juntas tomam decisões que a todos vinculam. E nós estamos condenados a tomar essas decisões coletivas por uma razão básica: em virtude da proximidade física e da condição temporal da existência humana. Estamos condenados, aqui e agora, a tomar regularmente decisões que salvaguardem os nossos interesses, que permitam, entre outras coisas, arbitrar o conflito perene entre a liberdade de ação e os bens, direitos ou interesses que são ameaçados pelo seu exercício. Mas esta necessidade absoluta de haver uma autoridade que decreta onde é que termina a liberdade de um e começa – usando uma metáfora com pergaminhos – a liberdade do próximo, é uma necessidade que não existe de todo no plano do espírito. Nós podemos conviver tranquilamente com opiniões diferentes, podemos conviver pacificamente numa anarquia espiritual ou de convicções. O que significa que, relativamente à ordem do espírito, não há necessidade alguma de instituirmos uma autoridade que venha decretar qual é a opinião verdadeira. Estamos num território em que não há nenhuma necessidade de ordenarmos politicamente as relações entre os seres humanos.
Esta diferença política entre a liberdade de expressão e a liberdade de ação torna-se ainda mais evidente e decisiva em condições de convivência democrática. É da natureza da democracia que aqueles que exercem aautoridade política – a autoridade para ordenar as relações entre os sujeitos – sejam, em última análise, os próprios cidadãos submetidos a essa autoridade. Isso pode acontecer diretamente, ou indiretamente, através da mediação de um nexo representativo. Ora, a democracia baseia-se no princípio da igualdade política, a ideia de que todos os cidadãos têm igual direito, desde que tenham capacidade para tanto, a concorrer para a formação da vontade coletiva que ordena as relações entre si. Como é impossível satisfazermos perfeitamente este princípio, o que obrigaria a que todas as decisões tomadas nesse âmbito fossem decisões subscritas pela totalidade dos cidadãos que lhe estão sujeitas – o princípio da unanimidade –, o critério do qual nós nos servimos para fundamentar o exercício democrático da autoridade política é o princípio da maioria. Todos têm uma igual oportunidade, através do direito de voto, de influenciar a formação da vontade coletiva. Uma pessoa, um voto.
No domínio do espírito, exatamente porque nós podemos conviver tranquilamente com opiniões diferentes, não há necessidade rigorosamente nenhuma de uma autoridade coletiva que decreta qual é a melhor opinião. O que significa que nós podemos viver numa forma de autogoverno mais perfeita. Essa forma de autogoverno mais perfeita é cada indivíduo poder decidir, através da operação normal das suas faculdades intelectuais, que opiniões é que têm mérito e que opiniões é que o não têm. Em democracia, ninguém decide por mim (muito menos a maioria!) aquilo em que eu devo acreditar ou que opiniões devo considerar. Na verdade, a autoridade democrática que repousa no princípio da maioria entraria em contradição com o seu radical axiológico, que é o princípio do autogoverno coletivo, se rejeitasse esta liberdade tendencialmente absoluta de os cidadãos poderem formar e expressar livremente as suas convicções. O que significa que há uma co-originariedade entre o princípio democrático, por um lado, e a liberdade de expressão, por outro, entendida nestes termos muito generosos, muito liberais, muito amplos, tendencialmente absolutos, em que eu a defendi. Daí que a liberdade de expressão seja uma liberdade primordial na arquitetura constitucional do Estado de Direito democrático.
Dir-me-ão: «[b]om, mas com certeza que há limites à liberdade de expressão.». Há, com certeza, mas é importante perceber o seguinte: de que limites é que nós estamos a falar? Esses limites à liberdade de expressão não são limites no sentido de situações em que a liberdade de expressão tem de ceder relativamente a considerações ou razões de sentido contrário. Não são casos em que a liberdade de expressão tem de ser ponderada com outros direitos ou valores. São casos que se situam fora do âmbito de proteção da liberdade de expressão e que por isso integram o bem que singularmente lhe diz respeito.
A liberdade de expressão – a liberdade que mereceu a defesa intransigente de Suart Mill e de que falam todas as declarações de direitos dignas desse epíteto – é, essencialmente, a liberdade de expressar opiniões. Ela não se confunde com outras coisas. Não se confunde, por exemplo, com a liberdade de insultar. O que é insultar? Insultar significa agredir outra pessoa. Ora, a forma de agressão paradigmática é a agressão física: dar um estalo a uma pessoa. Mas outra forma de agredir uma pessoa é atingi-la através de um meio espiritual. A agressão verbal é um sucedâneo da agressão física. É evidente que isto coloca um problema conceptual delicado, que é o problema de definir as notas essenciais do insulto. Mas esse problema está confinado a um domínio excepcional.
Há outros casos em que já não se pode falar propriamente de “liberdade de expressão”, mas sim de outra coisa. O exemplo clássico, de Oliver Wendell Holmes, é o de alguém que diz “Fogo!” num teatro ou numa sala de cinema cheios de gente, com o fito de provocar estragos e desordem. Isto é aquilo que em linguística se chama “uso perlocutório da linguagem”: alguém fala, mas fala para provocar um efeito de ordem material. Não é um “uso locutório da linguagem”, não serve para exprimir uma opinião, mas para provocar uma ação. O mesmo acontece com o incitamento ao ódio. Nestas situações, já não estamos a falar de “liberdade de expressão”, mas dos limites a uma forma de agir através de palavras. Mais uma vez, são casos excecionais.
Teria todo o gosto em falar sobre casos mais concretos, alguns dos quais são casos relevantes da vida pública portuguesa, mas obviamente que, com as funções que exerço agora – e apesar de estar aqui a falar apenas na qualidade de cidadão e de académico – não me devo permitir grandes liberdades. Há uma probabilidade relevante de vir a ter de intervir num desses casos. Portanto, não me posso debruçar sobre essa matéria.
Queria terminar com aquela que me parece ser a manifestação mais plástica e judiciosa da essência da liberdade de expressão. Trata-se de uma frase famosa, que está contida no romance Os Amigos de Voltaire, e que muitas vezes é atribuída ao próprio Voltaire, mas erradamente. É a seguinte: «[d]iscordo radicalmente de tudo o que dizes, mas defenderei, até à morte, o direito absoluto de o dizeres.». Isto parece-me exprimir, de forma belíssima, a essência da liberdade de expressão. Muito obrigado.